Desafios macroeconômicos e geopolíticos
Se durante as últimas décadas, apesar de alguns percalços, tivemos incentivos econômicos e geopolíticos1 que estimularam uma jornada relativamente próspera no cenário global, começamos 2023 com uma virada um pouco mais complexa, dinâmica e instável do que em outros anos.
De largada começamos o ano com desafios em dois grande pilares que definirão a movimentação em diversos aspectos nos próximos anos:
Desafio geopolítico com a guerra entre a Russia e a Ucrânia se prolongando e o seu impacto e potencial de escalada para outras esferas, as tensões nas relações EUA/China e a questão de Taiwan, a consequente crise energética na Europa e a severa polarização política e social em praticamente todas as democracias ocidentais.
Desafio macroeconômico com o novo normal em relação a taxas de juros altas e inflação também alta ( ou pelo menos acima dos patamares da última década ), uma provável recessão global ou de baixíssimo crescimento - pelo menos no curto prazo, desafios econômicos e demográficos na China, a oscilação no preço da energia que se acopla aos desafios de mudança climática e redesenhos das matrizes energéticas, e por último um questionamento sobre a organização das cadeias de suprimentos e de valor distribuídas ao redor do mundo e a sua resiliência em eventos extremos como a COVID-19 ou as recentes escaladas em tensões geopolíticas.
Esses dois pilares são o pano de fundo dos próximos anos, que apesar de conterem perspectivas positivas, marcam uma mudança em relação a organização global que vimos até aqui.
Por isso, em 2023 veremos algumas tendências e movimentos despontarem no palco das discussões globais, são algumas delas, por exemplos, as descritas a seguir…
It’s the economy, stupid!
Os próximos anos, especialmente os próximos 2 anos, serão determinados por aspectos macroeconômicos, onde as políticas monetárias e fiscais dos países e os seus impactos na taxa de juros e na inflação serão protagonistas para o desempenho das grandes economias ao redor do mundo.
Acima: uma visão das relações causais macroeconômicas. Fonte: Feedback Economics
Os primeiros impactos de um cenário de taxa de juros alta para conter o avanço da inflação nós já conseguimos sentir: quanto maior a taxa de juros maior o custo do capital e quanto maior o custo do capital menor é o investimento disponível na economia real e com isso, temos uma desaceleração econômica que desacelera o ciclo inflacionário que permite, no futuro, uma taxa de juros mais baixa que reinicia o ciclo de aquecimento e expansão da economia.
Tudo isso causou a reavaliação do preço de diversos ativos no mercado de capitais assim como o valuation das empresas no geral. A menor liquidez e disponibilidade de capital fez com que diversos investimentos que tiveram muita proeminência nos últimos 5 a 10 anos fossem reavaliados para patamares mais condizentes com a sua capacidade de gerar caixa, não no longo prazo, mas especialmente no curto/médio prazo.
Diante de um desafio de geração de caixa no curto prazo e a dificuldade de conseguir mais financiamento barato, as empresas são obrigadas a cortarem custos. Uma forma de fazê-lo é diminuindo as suas despesas recorrentes, uma bastante comum é a despesa com folha de funcionários, especialmente se houver a percepção de que haja excesso de pessoas e/ou baixa produtividade / baixo impacto gerado.2
A boa notícia é que este ciclo não é eterno, e eventualmente, ele reverte a sua polaridade: a inflação é estabilizada em um patamar considerado aceitável, o que permite que a taxa de juros seja diminuída, o que estimula a aceleração da economia através de mais investimentos, o que facilita o acesso ao capital - aumentando a sua disponibilidade, o que gera um otimismo maior que retroalimenta esse ciclo.
Os próximos anos serão extremamente impactados por esta dinâmica, e isso vai determinar de maneira geral, como diversos aspectos da nossa vida cotidiana é influenciado e percebido por nós.
Mudança climática, crise energética e uma nova economia mais sustentável
A principal pressão aqui está no fato de que se continuarmos a trilhar o caminho atual de desenvolvimento e crescimento, provavelmente terminaremos com um aumento da temperatura média na superfície do planeta terra de 3,6 graus celsius até o ano 2100.
Esse aumento na temperatura é causado, de maneira geral, pela multiplicação de 5 grandes fatores: o crescimento da população global, o aumento do PIB per capta, a intensidade de uso energético para entregar esse PIB per capta e a intensidade de carbono da energia usada para isto.
Todos esses fatores multiplicados contribuem para um aumento das emissões de CO2 na atmosfera a partir dessas atividades, que agrava o efeito estufa, o que por sua vez desregula a temperatura média global alterando os padrões mais recentes de comportamento climático no planeta terra.
E porque isso é importante? Além do imperativo de sobrevivência ( que pode ou não ser um argumento aceito por todos ), veremos uma transformação gradual e global em direção a uma economia mais sustentável, especialmente no que toca a matriz energética global e o quão limpa e renovável ela é.
Além disso já vemos um aumento da pressão feita por investidores que querem cada vez mais investir em empresas que contribuam positivamente para os efeitos na mudança climática.
Veremos também, um aumento das pressões regulatórias, onde cada vez mais as agências e governos desenham políticas e regulamentações que forçam as empresas a aderirem, a medirem e reduzirem as suas emissões de carbono na atmosfera como efeito direto/indireto da produção de seus produtos e entrega de seus serviços.
Para redesenharmos todas as cadeias de valor em praticamente todos os setores da economia com o objetivo de serem menos dependentes de fontes energéticas como o petróleo, gás natural ou carvão e se tornarem mais dependentes de energias renováveis, necessitaremos um esforço global e coordenado, talvez em uma escala sem precedentes.
No meio do caminho desta jornada de transição nas próximas décadas veremos muita instabilidade geopolítica e social, influenciada e influenciando desde o aumento do preço dos combustíveis ( seja por taxação para desestimular o seu consumo ou pela sua eventual escassez ) até o preço dos alimentos.
fonte: Limits to Growth
A pressão causada pelos desafios da mudança climática acontece em paralelo as questões geopolíticas e macroeconômicas que eu citei acima, contribuindo para um cenário particularmente complexo de ser endereçado.
Desacoplamento econômico e a desglobalização…
Se desde as reformas de Deng Xiaoping a China forneceu força de trabalho para os países ocidentais que migraram sistematicamente parte ou a totalidade da sua produção para lá, vimos que ao longo do tempo ela também se tornou um centro gravitacional sendo uma das principais potencias econômicas globais.
Esse acoplamento econômico é um dos motores do crescimento que observamos no PIB global nos últimos 40 anos. No entanto essa organização parece estar chegando ao seu limite, seja pelas instabilidades geopolíticas entre a China e outras grandes potencias, seja pelo envelhecimento da população chinesa e a sua entrada na classe média, seja pelo impacto nas cadeias de fornecimento por conta da COVID-19 e as políticas em torno da pandemia, o que veremos cada vez mais é uma incerteza e risco atrelados ao alto acoplamento entre as economias globais.
Vamos olhar o contexto do mercado de microprocessadores por exemplo, a TSMC é hoje responsável pela produção de aproximadamente 50% de microprocessadores no mundo, e por ser situada em Taiwan ela apresenta riscos e incertezas enormes, tanto geopolíticas com a possibilidade de reintegração politica a China continental, como econômicas com a possibilidade de uma interrupção da sua produção no caso de um conflito na região. Além disso semicondutores fazem parte de um conjunto de tecnologias estratégicas tanto nas suas aplicabilidades no contexto civil mas especialmente no contexto militar. Como enxergar positivamente uma cadeia de valor altamente acoplada dado este contexto?
Um segundo exemplo é relacionado a forma como o governo Chinês lidou com as bigtechs nas últimas décadas: apesar de conceitualmente a China ter aderido a diversos aspectos de livre mercado desde a sua abertura econômica, na última década ela cada vez mais procurou intervir em setores da economia, e por conta disto diversas empresas foram diretamente afetadas por essas medidas. Essas disrupções fazem com que a maior dependência e integrações econômicas sejam vistas como um fator de risco e incerteza para as cadeias produtivas no mundo.
Por último, estamos vendo os efeitos geracionais da evolução demográfica da população da China que a partir de 2023 não vai deter mais o título da nação mais populosa do mundo, perdendo este lugar para a Índia, que somado ao fato de que a população chinesa está envelhecendo acaba causando pressões naturais na disponibilidade de mão de obra e no seu sistema previdenciário.
Por isso veremos ao longo desta década um movimento gradual mas constante de diversificação das cadeias produtivas, um distanciamento da completa integração e acoplamento em direção a uma estrutura mais resiliente, mais próxima geograficamente e com menor concentração de risco, não apenas risco econômico e de disrupções na cadeia de fornecimento mas especialmente riscos geopolíticos.
É como se estivéssemos saindo do “just in time” para o “just in case”, ou seja, é melhor para as empresas e países diversificarem as suas cadeias de produção “just in case” algum problema aconteça.
A digitalização continuará, ainda existe muito trabalho a ser feito…
No meio de todo esse contexto geopolítico e econômico, a digitalização e informatização de praticamente todos os aspectos da vida contemporânea continuará a todo vapor.
Por exemplo, se utilizarmos como um proxy para a digitalização a quantidade de workload e workflows que ainda reside em uma infra-estrutura on-premisses versus a quantidade de workload e workflows que já foi migrado para alguma nuvem, vemos que apenas 15%-25% já foi migrado.
Se considerarmos esse exemplo micro, em sua forma mais simplória ( um lift and shift das aplicações para a nuvem ) vemos que ainda existe muito espaço para reconstrução dessas diversas aplicações em paradigmas e tecnologias mais performáticas e contemporâneas.
Essa lógica obviamente não leva em consideração as oportunidades de criar valor com a digitalização e informatização de segmentos que ainda não tenham sofrido a sua transformação digital, e nem levando em consideração as oportunidades de construir novos negócios, empresas, softwares e plataformas para resolver problemas e necessidades dos consumidores.
Apenas essas forças e oportunidades ainda vão gerar muita demanda para o mercado de tecnologia, imagine então o tamanho da oportunidade conforme essa lógica é expandida para outros nichos, perspectivas e segmentos de mercado.
Além disso, conforme mais empresas e pessoas são engolidas pela força da digitalização, teremos mais desafios e oportunidades de cibersegurança, o que também vai servir como um motor de crescimento e expansão da tecnologia.
Por último, os avanços mais recentes das capacidades de data, analytics e inteligência artificial, exemplificada em muitos casos por modelos de aprendizado de máquina, farão com que 2023 e as próximas décadas ainda tenham muita oportunidade de crescimento para tecnologia. Ainda falta muito trabalho a ser feito, no entanto…
Profitable tech é o novo normal
No curto prazo estamos em um downturn econômico e veremos cada vez mais o imperativo para empresas de tecnologia ( e empresas no geral ) buscarem e manterem fluxo de caixa positivo e modelos mais sustentáveis e rentáveis em suas operações.
Se ao longo de 2010 até 2020 vimos a rápida e completa expansão da busca por talentos de tecnologia, causando pressão na competição pelos mesmos, desequilíbrio entre oferta e demanda e outros males correlacionados.
O somatório de todas essas forças fez com que em 2020 em diante tivessemos ondas recorrentes de demissões em massa, performance reviews com curva forçada, diminuição no ímpeto de recrutamento e uma reorganização do mercado de trabalho global em tecnologia.
fonte: Layoffs.fyi - 21/jan/2023
Se por um lado isso tem consequências obviamente gravíssimas, por outro também reflete uma busca por um equilíbrio mais saudável na relação com o capital investido nestas empresas, seus valuations e a sustentabilidade de médio/longo prazo desses negócios.
Como eu comentei acima, ainda estamos no meio de uma tendência multi-geracional de mais digitalização e mais informatização de todos os aspectos contemporâneos seja na vida pessoal, nos hábitos dos consumidores e suas relações, e especialmente nas empresas e na forma como geram e capturam valor.
Por isso se considerarmos que das 1056 empresas que fizeram demissões segundo o acompanhamento da Layoffs.fyi, 79% fizeram layoffs entre 1% a 30% do seu headcount total, conseguimos ver que este mercado ainda absorve e emprega muita gente.
Além disso vale ressaltar que esse mesmo mercado continua e continuará contratando ( talvez de maneira um pouco menos agressiva, talvez mais focado em empresas e países que se beneficiam da conjuntura econômica e geopolítica atual mas ainda sim contratando e expandindo ).
Por último, esse contingente de mão de obra disponível no mercado acabará reduzindo a concentração de talentos em poucas empresas - notoriamente as big tech companies, democratizando um pouco mais o acesso a talentos de tecnologia em empresas que não sejam necessariamente relacionada com tech, além de abrir a oportunidade de novas empresas serem criadas.
Moore’s Law, Intel e TSMC e novos paradigmas computacionais
Nos próximos ano veremos cada vez mais os limites da Lei de Moore sendo atingidos, e ainda que esse paradigma computacional e de processadores ainda tenha utilidade marginal para ser extraída, veremos cada vez mais o amadurecimento de tecnologias como computação quântica ou engenharia neuromórfica se tornando opções viáveis e acessíveis para resolver problemas de negócio em escala.
Tudo isso vai acontecer sob o pano de fundo do posicionamento global da TSMC como a maior empresa de semicondutores no mundo e a sua constante diversificação em relação a Taiwan, o incentivo a construção de novas fábricas - inclusive da Intel - em países ocidentais justamente para torná-las mais resiliente e diminuir o risco geopolítico associado a dinâmica atual de design e manufatura de processadores.
Em resumo…
As tensões e rearranjos geopolíticos e macroeconômicos ditarão grandes mudanças nas tendências que experimentamos nas últimas décadas. A mudança climática e as suas implicações contribuirão para aumentar a pressão dentro deste contexto. Por conta dessas e diversas outras forças, veremos um desacoplamento econômico das cadeias produtivas de diversos países e empresas com objetivo de se tornarem mais resilientes e flexíveis em casos extremos de risco e incertezas.
A boa notícia é que apesar da pressão de curto prazo que o mercado de tecnologia está sentindo, no médio e longo prazo a continuidade da sua expansão é uma força transformacional que dificilmente será interrompida. Soma-se a isso as oportunidades apresentadas por novos paradigmas de computação, as novas capacidades habilitadas por dados e inteligência artificial e a crescente pressão por cibersegurança conforme navegamos na direção de mais digitalização e informatização de todos os aspectos da vida contemporânea.
O objetivo deste post foi o de dar sentido para o contexto complexo, ambíguo, paradoxal, incerto e arriscado e volátil que teremos que navegar as próximas décadas, apontando macro tendências que afetarão as dinâmicas que experimentamos no nosso cotidiano.
Mesmo se considerarmos as guerras no Afeganistão e Iraque, ou a crise de 2007/2008 nos Estados Unidos, no geral, vivemos em uma longa jornada de desenvolvimento e crescimento.
Ou apenas um incentivo perverso para tal.