Indústrias, domínios e novas formas de pensar o posicionamento estratégico
Em 1980 e novamente em 1985 Michael Porter escreveu dois dos livros mais essenciais da literatura de estratégia de negócios: o primeiro é o Competitive Strategy e o segundo é o Competitive Advantage, esses dois livros de certa forma cristalizaram o pensamento estratégico no contexto de negócios nas décadas de 80, 90 e anos 2000.
Seguindo a linha de definição de estratégia em termos de “relacionar uma empresa com o ambiente onde ela está inserida” ( conceito materializado pelo estrategista e matemático russo Igor Ansoff ), para Michael Porter, estratégia de negócios é diretamente relacionado ao posicionamento da empresa.
Para ele, o menu de opções estratégicas era relativamente restrito e a escolha iria depender da empresa conseguir encontrar uma posição estratégica na qual ela poderia alcançar lucratividade enquanto se defende contra os competidores existentes, assim como se defende também dos competidores que gostariam de entrar naquele mercado. Para isso ele concebeu 3 posicionamentos genéricos possíveis para uma empresa em um mercado:
se manter o líder do mercado porque a sua empresa consegue manter os seus custos baixos
se manter o líder do mercado porque a sua empresa possui um produto/serviço diferenciado o suficiente de forma que ele não pode ser desafiado por outros competidores da indústria
identificar algum nicho do mercado onde a especialização faria com que a capacidade de competir daquela empresa fosse enaltecida
Além disso, outra abordagem concebida por ele foi a análise das forças que moldam o ambiente aonde uma empresa se encontra: o conceito de que uma indústria ( essa abstração conceitual onde uma empresa existe dentro de uma área na qual também existem outras empresas ) é moldada por 5 forças distintas que impactam a sua dinâmica:
ameaça de entrantes ( e as barreiras de entrada )
ameaça de substitutos
poder de barganha dos fornecedores para aquela indústria
poder de barganha dos clientes para aquela indústria
intensidade da rivalidade entre as empresas daquela indústria
A última contribuição do Michael Porter que é pertinente para a nossa análise foi o conceito de cadeias de valor: Uma cadeia de valor é o conjunto de atividades que uma firma operando dentro uma indústria específica executa para entregar um produto/serviço de valor para o mercado que ela atende.
O ponto essencial é que uma das analogias interessantes que foi postulada é como a cadeia de valor de uma empresa se conecta a cadeia de valor do comprador. Ou seja, na concepção de vantagem competitiva estratégica, o encaixe entre as atividades na cadeia de valor da empresa e o encaixe entre as cadeias de valor dos fornecedores, distribuidores e dos compradores era essencial para a sustentabilidade do posicionamento de uma empresa.
O conceito de buyer value chain é um conceito curioso quando observado no ano 2021, onde o foco na experiência do cliente tomou a centralidade na estratégia das empresas, no entanto em 1985 ele era definido da seguinte forma:
“Buyers also have value chains, and a firm’s product represents a purchased input to the buyer’s chain. Understanding the value chains of industrial, commercial, and institutional buyers is intuitively easy because of their similarities to that of a firm. Understanding households’ value chains is less intuitive, but nevertheless important. Households ( and the individual consumer within them ) engage in a wide range of activities, and products purchased by households are used in conjunction with this stream of activities. A car is used for the trip to work and for shopping and leisure, while a food product is consumed as part of the process of preparing and eating meals. Though it is quite difficult to construct a value chain that encompasses everything a household and its occupants do, it is quite possible to construct a chain for those activities that are relevant to how a particular product is used. Chains need not be constructed for every household, but chains for representative households can provide an important tool for use in differentiation analysis (…)
A firm's differentiation stems from how its value chain relates to its buyer’s chain. This is a function of the way a firm’s physical product is used in the particular buyer activity in which it is consumed (e.g., a machine used in the assembly process) as well as all the other points of contact between a firm’s value chain and the buyer's chain.”
Competitive Advantage, pg. 52 (Michael Porter)
A visão do que hoje chamamos de jornada do usuário/cliente e a relação com todos os pontos de contato, na época foi explorada sob a ótica de uma cadeia de valor do comprador, e o foco da análise era fundamentalmente feito da indústria, para a empresa e por último o cliente era tratado como um passo a mais a ser conectado na sistema de valor geral que estava sendo analisado/definido.
Talvez o principal problema dessa forma de análise é a indução de comportamento de pensar fundamentalmente em uma ordem que reduz o cliente a um “passo a mais” no sistema de valor, onde a grande maioria da análise estratégica é feita considerando a indústria, suas forças e a competição ( o ambiente ), o posicionamento da empresa, e o cliente é segmentado, pouco personificado e mecanicamente considerado como apenas mais uma etapa do sistema a ser integrado com.
Por favor, não me entendam errado, essas análises da forma como foram concebida são necessária e extremamente úteis ( inclusive foi a forma como eu analisei o posicionamento estratégico da Enjoei nos artigos 1, 2 e 3 ) no entanto vemos uma evolução a partir desse conceito inicial na década de 90 e principalmente nos anos 2000 que elucidam novas formas de se pensar o cliente dentro do posicionamento estratégico de uma empresa.
A visão de fora para dentro, a partir do ponto de vista do cliente
Ao longo das últimas décadas a centralidade no cliente e nas suas necessidades, dores e perspectivas foram enaltecidas por diversas empresas, frameworks e abordagens que exploraram com profundidade o ponto de vista do cliente: desde o Design Thinking e a IDEO, passando por Clayton Christensen e Anthony Ulwick e o Job to be Done até aspectos mais recentes de customer development e product discovery explorados pelo Eric Ries, Steve Blank, Marty Cagan e outros.
No entanto, temos dois aspectos que ainda precisam ser conciliados no pensamento estratégico: a internet é fundamentalmente diferente, apesar de diversos aspectos das análises estratégicas citadas acima permanecerem pertinentes, novas formas de pensar as dinâmicas relacionadas a negócios digitais pedem por uma releitura de alguns conceitos tradicionais e complementações ao mesmo. Além disso, a visão centrada no usuário ainda é tímida quando comparada ao vasto repertório da análise da indústria e posicionamento da firma e ela precisa ser complementada e incrementada com algo mais contemporâneo.
“Olá domínios, adeus indústrias”
Por exemplo, em um estudo recente do MIT Center for Information System Research é advogado uma mudança em relação a forma como as empresas analisam os seus posicionamentos
“For decades, companies have thought of themselves as operating in industries such as banking, retail, and energy. In contrast, most customers seek to fulfill specific needs—business customers might aim to manage their energy consumption, and consumers might navigate getting an education. We call these different customer problems and opportunities domains. Digital technologies, and new business models such as ecosystems, provide an opportunity to rethink how to solve your customers’ needs in each of their important domains. In this briefing, we share our first efforts at identifying the key domains, scope the size of the opportunity, and provide examples.
(…)
The Domain Advantage
A domain describes a customer’s end-to-end need in an area such as home, mobility, energy, education, corporate services, or secure supply chain. Currently the customer’s domain need is fulfilled by combining digital services curated from companies across different industries—with the customer often doing the curating. Companies that are embracing the shift to customer domains curate the needed services themselves to create a go-to destination within a domain, while also refining the customer experience to reduce friction, such as by implementing single sign-on and coordinating compliance.”
Na minha opinião esse é um importante passo em direção a um pensamento sobre posicionamento estratégico verdadeiramente centrado no cliente. Os primeiros passos para essa abordagem seriam:
“Identify your typical customer’s end-to-end journey, including beyond your company’s scope, and consider how you could improve it—or even own it as a one-stop destination.
Enable customer curation of your company’s products and services and break down silos to make it easier for the customer to create their own domain solution.
Digitally partner to achieve coverage of the customer’s domain needs, enabling cross-system information sharing that you manage to produce a great customer domain experience.”
Aggregation Theory
Em 2015 Ben Thompson concebeu o que ficou conhecido como a Teoria da Agregação, sendo a internet e o digital um “bicho diferente” onde paradigmas fundamentalmente diferentes regem a forma como o posicionamento estratégico é definido para esse contexto.
“The value chain for any given consumer market is divided into three parts: suppliers, distributors, and consumers/users. The best way to make outsize profits in any of these markets is to either gain a horizontal monopoly in one of the three parts or to integrate two of the parts such that you have a competitive advantage in delivering a vertical solution. In the pre-Internet era the latter depended on controlling distribution.
(…)
The fundamental disruption of the Internet has been to turn this dynamic on its head. First, the Internet has made distribution (of digital goods) free, neutralizing the advantage that pre-Internet distributors leveraged to integrate with suppliers. Secondly, the Internet has made transaction costs zero, making it viable for a distributor to integrate forward with end users/consumers at scale.
This has fundamentally changed the plane of competition: no longer do distributors compete based upon exclusive supplier relationships, with consumers/users an afterthought. Instead, suppliers can be commoditized leaving consumers/users as a first order priority. By extension, this means that the most important factor determining success is the user experience: the best distributors/aggregators/market-makers win by providing the best experience, which earns them the most consumers/users, which attracts the most suppliers, which enhances the user experience in a virtuous cycle.”
A forma acima é um conceito muito mais aderente para descrever empresas como Google, Facebook, Airbnb, Amazon e principalmente o seu marketplace, Apple App store e Google Play, Uber e diversas outras empresas cuja relação direta com o consumidor é o aspecto mais essencial do seu posicionamento, do que os posicionamentos genéricos descritos no inicio do artigo.
Modularidade e Plataformas
Por último, a internet e o digital permitem novos paradigmas de integração, onde diversos pontos da camada se conectam entre si permitindo o funcionamento do sistema em sua integralidade.
Um exemplo da camada OSI que provê a arquitetura básica da internet, separando o mundo entre a camada soft e de apresentação e a camada hard e de transporte, infraestrutura e plataforma.
No entanto, existe uma decisão muito explicita sobre posicionamento estratégico que é onde na pilha ( ou cadeia de valor ) a sua empresa se posicionará. Pensando em eixos diametralmente opostos, onde de um lado você domina a camada onde a relação direta com o consumidor acontece, a sua apresentação e user interface, e no outro extremo onde a sua empresa provê a infra-estrutura, plataforma, os integradores e integrações, os serviços modulares e horizontais nesta mesma pilha.
Por exemplo, se analisarmos alguns dos principais players de varejo por essa ótica, chegamos na seguinte distinção de posicionamento:
Amazon e a Magazine Luiza ( assim como os seus marketplaces ) são exemplos de empresas de varejo que dominam a relação direta com os seus consumidores, por outro lado empresas como Shopify e VTEX são empresas que não dominam a relação direta com o consumidor, no entanto, fornecem a infraestrutura/plataforma para que a sua marca e o seu negócio possam ter a relação direta com o consumidor.
A mesma análise poderia ser feita para diversas pilhas ( ou cadeias de valor ) em suas próprias indústrias ou domínios do consumidor para enxergar novas oportunidades de posicionamento. Apesar de ser um conceito explorado pelo próprio Michael Porter, uma releitura focando nesses novos paradigmas que a internet e o digital proporcionam abre muitas oportunidades de evolução desse tipo de pensamento para o futuro.
Takeaways
A estrutura tradicional do pensamento estratégico é cristalizada em conceitos muitos poderosos como análise das 5 forças que modelam a dinâmica de uma indústria, análise da cadeia de valor de uma empresa e suas integrações e os posicionamentos genéricos que a sua empresa pode buscar dentro do ambiente em que ela se encontra
Ao longo dos anos novas formas de pensar a estratégia de uma empresa lançaram luz a formas mais contemporâneas de entender onde e como uma empresa pode jogar: o crescente foco na centralidade no usuário, começando com a cadeia de valor do consumidor, passando por design thinking, jobs to be done e customer development e invariavelmente culminando em uma análise focada nos domínios onde o cliente reside e então entendendo as oportunidades onde a sua empresa poderia se posicionar
Por outro lado, a natureza fundamentalmente nova da internet e do digital também abre espaço para uma análise focada na dinâmica de agregação predicada na relação direta com o consumidor e nos canais de distribuição, Ben Thompson sintetizou isso de forma explicita e esse modelo ajuda a descrever de uma forma mais aderente o posicionamento de empresas como Amazon, Airbnb, Uber, Google, Facebook e outras
Além disso, uma visão mais “plataformizada” e modular que é permitida pela internet e o digital ajuda a sua empresa a encontrar um posicionamento que seja baseado em dois opostos: a relação direta com o consumidor ou o foco em plataforma através de API's e calcada na boa experiência do desenvolvedor
Essas três novas formas complementam e tangibilizam mais ainda o pensamento estratégico mais tradicional e provêem um framework muito mais abrangente e aderente aos desafios do dia de hoje.