Uma análise do posicionamento estratégico da Enjoei - Parte 2
O primeiro post da série analisou o posicionamento estratégico da Enjoei, o segundo post explora os desafios que a Enjoei vai enfrentar para expandir o seu catálogo considerando a dinâmica de artigos usados e a inércia das pessoas para se livrar daquelas roupas encalhadas em seus armários - quais são as alavancas estratégicas para reduzir essa inércia? O terceiro post da série aborda um problema central de marketplaces de nicho - listagem de produtos falsos na plataforma da Enjoei e como atores mal intencionados na plataforma podem afetar o posicionamento e a credibilidade da plataforma nos próximos meses/anos.
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A inércia do consumidor e os desafios para o crescimento da Enjoei (Trade-In e o EnjuPRO)
O mercado C2C que a Enjoei se propõe a atender é constituído inicialmente de pessoas que gostam de moda, assim como de pessoas que se interessam pelo movimento de moda sustentável ( roupas após o primeiro uso com novos donos ), esse grupo é complementado com pessoas que possuem a genuína necessidade de "se livrar" de algumas roupas que estão em seu guarda-roupa, e outras que apenas procuram por um bom custo-benefício ao comprar roupas.
O diagrama abaixo exemplifica a dinâmica de compra de novas roupas, que adiciona e aumenta o estoque de roupas que uma pessoa possui em casa. Esse estoque acumulado eventualmente evidencia o problema de "falta de espaço" nos armários ou na casa em geral, o que exerce uma pressão para "se livrar" das roupas ( ou se mudar para uma nova casa, mas isso é mais difícil ), fazendo com que um dos lados da Enjoei eventualmente liste um produto na plataforma, efetivamente "se livrando” das roupas e ganhando um dinheiro enquanto faz isso.
Existem ainda outros fatores influenciando o descarte de roupas, os ciclos constantes de novas tendências da moda fazem com que algumas roupas deixem de ter "status” em um ambiente social, o que eventualmente gera pressão para o descarte dessas roupas, o que inicia um ciclo de compra de novas roupas. Esses loops que se reforçam e criam dinâmicas essenciais para a Enjoei.
Mesmo que o mercado “fashion” esteja repensando profundamente essas dinâmicas de ciclos contínuos de criação/destruição na moda, que impulsiona os ciclos consumistas e de fato produz artigos de moda em excesso, é razoável dizer que o efeito das mudanças dessa forma de atuar só serão percebidos com o tempo, diluindo o seu impacto imediato.
A dinâmica de atratividade inicial da plataforma é descrita acima:
A listagem inicial de produtos aumenta a atratividade da plataforma para compradores, o que por sua vez aumenta a atratividade para vendedores que por sua vez vão listar mais produtos, o que gera um ciclo virtuoso dentro da plataforma.
Os primeiros a listarem produtos na plataforma possuíam provavelmente interesse direto em participar dessa rede: moda sustentável e artigos de moda reutilizáveis, hype, economia circular ou talvez apenas o problema genuíno de espaço e "se livrar" de roupas que já não servem mais para o seu uso.
Um diagrama descrevendo o ganho de “awareness” sobre os impactos positivos de artigos de moda de 2o uso e como o boca-a-boca sobre uma compra bem sucedida ajuda a aumentar o ganho de engajamento/consciência sobre o tema, gerando um ciclo virtuoso no produto da Enjoei
No entanto, conforme essa base de usuários altamente engajada com o propósito da plataforma foi sendo gradualmente conquistada e retida, o dilema de crescimento se tornou prioritário para a empresa. Afinal de contas, como fazer com que mais pessoas que tenham roupas para "se livrar" se sintam compelidas a fazerem e mais importante ainda, o que as impede hoje? Quais são os motivos dessa inércia?
Quanto maior a inércia/dificuldade para se desfazer e doar/vender as roupas, menor é a listagem de produtos na Enjoei, o que afeta a atratividade dos compradores e vendedores para a plataforma.
Aparentemente bastante conscientes desse ciclo, a Enjoei adotou algumas estratégias bastante interessantes para lidar com esse tema: o EnjuPRO e o Modelo de Trade-In:
"O EnjuPRO é uma operação que possui alta capacidade de ajudar as pessoas a venderem aquilo que não usam mais, uma vez que fazemos toda a montagem de suas lojinhas. Essa operação está disponível apenas para a cidade de São Paulo, mas o nosso plano é expandir o EnjuPRO nacionalmente."
Prospecto IPO, Investimento em sortimento e catalogo. Pg. 17
"O processo de vendas pelo usuário no EnjuPRO é ainda mais simplificado, pois em determinadas cidades oferecemos serviços de coleta de itens: basta abrir o aplicativo, solicitar a coleta dos itens e buscaremos os produtos a serem vendidos. O enjuPRO cobre (i) triagem de produtos; (ii) cadastro; (ii) (sic) fotografias; (iii) sugestão de preços; (iv) armazenamento; e (v) envio das peças.
Para esse serviço, inicialmente oferecido apenas na cidade de São Paulo, é cobrada uma tarifa fixa de vendedores ( de R$5,00 a R$13,00 por faixa de valor de produto até R$1,500.00, e grátis para produtos com valor superior a R$1,500.00) e uma comissão dos vendedores de 50% sobre o valor das vendas feitas pelo EnjuPRO, dos quais 20% se referem à tarifa do Enjoei e outros 30% ao serviço do EnjuPRO"
Prospecto IPO, Vendas através do EnjuPRO, pg. 14
Com esse movimento o que a Enjoei está fazendo é intencionalmente remover a inércia/dificuldade das pessoas ao se desfazerem de suas roupas, reduzindo a dor do processo e cobrando 50% do valor das vendas dos produtos obtidos com essa modalidade.
Existe aqui um movimento arriscado por parte da empresa, que incorre em um custo inicial para montar/gerenciar a lojinha, obter e cadastrar os produtos, assim como armazená-los até a sua venda, como essa operação vai escalar? Como esses custos escalam junto com o aumento dessa parte da operação? Talvez por isso o serviço esteja disponível inicialmente apenas em São Paulo. Dentro desse modelo também está implícito um aspecto de curadoria dos produtos para o sucesso de vendas dessa abordagem ( senão a Enjoei vai virar um depósito de “tranqueiras” que seus clientes não possuem mais interesse ou espaço ).
Existem outros desafios de escala dessa estratégia que podem limitar a expansão desse modelo para outras localidades, no entanto é uma parte do modelo de negócio bastante agressivo onde a Enjoei assume mais risco, abre mão de diversos aspectos que reduzem o custo marginal da sua operação, porém consegue alavancar um segmento de clientes que por inércia não cadastraria os seus produtos por iniciativa própria na plataforma.
Por último, o modelo de Trade-In possui tambem algumas características bastante interessantes:
"Aumento do modelo de trade-in ( troca de roupas usadas por desconto em loja ): Temos uma operação que permite aos clientes trocarem produtos usados da mesma marca por descontos de até 25% em peças da nova coleção. Os produtos levados pelos clientes de volta para a loja serão vendidos na operação do enjuPRO, que repassará o valor descontada a comissão para a marca, à medida que os produtos são vendidos. Assim, a marca gera fluxo para suas lojas além de criar um círculo virtuoso no ecossistema da indústria da moda"
Prospecto IPO, Investimento em sortimento e catálogo, pg. 17
Aqui o ciclo funciona de uma maneira diferente: a relação da Enjoei com as marcas ( as quais muitas vezes ela eventualmente compete ) é enaltecida em um formato de cooperação. O cliente troca uma roupa usada de uma loja por um desconto de 25% para compra de novas roupas na mesma loja. O próprio cliente se encarrega de levar a roupa até aquela, que por sua vez coordena a coleta da roupa ( provavelmente em grandes volumes de peças ) para a operação do EnjuPRO, que por ser atrelada a marcas estabelecidas que oferecem um fluxo constante de roupas, pode ser mais facilmente otimizada e integrada para redução de custos dessa operação.
A partir daí o sortimento de produtos da Enjoei aumenta e eventualmente essa roupa possui uma vida útil mais prolongada do que teria se o dono apenas comprasse uma roupa nova e mantivesse a anterior sem retorná-la para essa economia circular. A troca dessa peça por 25% de desconto, apesar de originar a venda de uma roupa nova ( e com isso estimular a produção da mesma ), ainda assim estabelece uma cadeia de valor na qual as roupas aumentam a sua chance de terem a sua vida útil prolongada.
O modelo de Trade-In resolveria uma ambiguidade na relação da Enjoei com as marcas cujas roupas ela vende. Ela permite gerar um ciclo virtuoso entre a plataforma e essas marcas se tornando também uma empresa geradora de receita para elas, além do impacto positivo de marca.
Não consegui avaliar se essas ideias de produto foram concebidas na Enjoei ou adaptada de outras fontes, no entanto, aqui no Brasil a Enjoei está diferenciadamente posicionada para capturar o valor dessa abordagem.
Por último, a Enjoei poderia se enveredar por outros segmentos, provavelmente se posicionando como um player premium no ecossistema, entre eles um foco maior em moda masculina ou ainda em outros segmentos:
“Atualmente estamos focados em artigos de moda, e planejamos expandir ainda mais nossas ofertas de moda com um sortimento mais amplo de moda infantil e moda masculina, além de expandir nossas operações para outras categorias com alto potencial de crescimento, incluindo casa e decoração e colecionáveis”
Prospecto IPO, Investimento em sortimento e catálogo, pg. 17
Apresentação para investidores, 3T2020, pg. 11
Ou seja, estabelecido o nicho inicial, a cadeia de valor da Enjoei permite a entrada em outros segmentos que tenham economia de escopo para aumentar o sortimento e conseguir angariar novos usuários para a sua plataforma obtendo mais valor das atividades que já possuem fit com esses novos segmentos de mercado.
Cenas do próximo capitulo…
No próximo post da série, vamos analisar a dinâmica que na minha opinião é a maior ameaça para a Enjoei no curto prazo: como a empresa está lidando com a listagem de produtos falsificados dentro da sua plataforma, como isso afeta o seu posicionamento premium e a relação de confiança que é essencial para a sobrevivência de um marketplace.
Conheça também
A edição mais recente do podcast Produto pelo mundo figurou o Senior Product Designer do Spotify, Fabiano Souza. Ele completa 2 anos por lá e é responsável por Podcast dentro da Spotify! Vale ouvir pra conhecer sua trajetória, como os times estão organizados no Spotify, organização dos designers nos times e mais um pouco.
https://produtopelomundo.captivate.fm/episode/16-fabiano-souza-no-spotify-stockholm
https://produtopelomundo.captivate.fm/
Referências:
Prospecto definitivo para abertura de capital
Resultado 3T2020