Enjoei, falsificações e o mercado de "limões" - Parte 3
Como a assimetria de informação pode afundar um marketplace e como o Enjoei pode resolver esse problema
O primeiro post da série analisou o posicionamento estratégico da Enjoei, o segundo post explora os desafios que a Enjoei vai enfrentar para expandir o seu catálogo considerando a dinâmica de artigos usados e a inércia das pessoas para se livrar daquelas roupas encalhadas em seus armários - quais são as alavancas estratégicas para reduzir essa inércia? Neste terceiro post da série abordamos um problema central de marketplaces de nicho - listagem de produtos falsos na plataforma da Enjoei e como atores mal intencionados na plataforma podem afetar o posicionamento e a credibilidade da plataforma nos próximos meses/anos.
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Em nossa última análise sobre o Enjoei, vamos avaliar uma dinâmica recente que tem acontecido na plataforma: a venda de produtos falsificados e como isso pode afetar severamente o posicionamento da empresa, não apenas para os seus usuários que eventualmente podem se encontrar lesados, mas também para quem investe na ação e a reputação do marketplace como um todo.
O caso da bolsa Chanel falsificada
O caso se resume no seguinte: uma pessoa listou no Enjoei uma bolsa Chanel que eventualmente foi adquirida por outro usuário da plataforma, no entanto, após alguns meses o comprador se deu conta que a bolsa vendida era falsa, e seguiu por processar a Enjoei e o vendedor pelo prejuízo. Em um desenvolvimento no caso foi decidido que a Enjoei tem obrigação legal por ressarcimento ao comprador em casos como esse, pois por ser uma plataforma que intermedia a transação ela é responsável em última instancia pelo que é veiculado em sua plataforma.
O problema aparentemente não é pontual, conforme relatado por diversos usuários da plataforma. No entanto, o objetivo aqui não é fazer uma análise da situação jurídica da Enjoei, mas sim analisar o que parece ser um problema sistemático e relacionado a dois pontos essenciais: a dificuldade de curadoria e validação de um volume grande de produtos listados diariamente (isso é dificultado ainda mais quando se trata de produtos usados), assim como o posicionamento da Enjoei de buscar formas de expandir o seu sortimento de produto, aumentando o fluxo de novos produtos e tipos de produtos listados o que invariavelmente coloca mais dificuldade em garantir que produtos falsificados como o acima não entrem no marketplace. Dentro desse contexto, o que a Enjoei pode fazer? Essa dinâmica é inteiramente nova? Outros marketplaces já sofreram de problemas similares? Existe solução?
O mercado de “limões” e assimetria de informações em marketplaces
Em 1970, o economista e ganhador do prêmio Nobel de economia George Akerlof, escreveu uma brilhante tese chamada: “The market for ‘lemons’: Quality uncertainty and the market mechanism”. Essa tese discorre sobre o mercado de carros usados nos Estados Unidos como um exemplo, considerando o que acontece com o mercado de carros usados quando um vendedor sabe quais carros possuem problemas ( carros esses chamados de “limões”, ou seja, negócios ruins para o comprador ) e quais carros são "barganhas” e por isso seriam “bons negócios” para o comprador ( carros esses chamados de “pêras” ).
Akerlof determinou que em um marketplace saturado por produtos cuja qualidade não pode ser aferida (ou em muitos casos, cujos defeitos são escondidos do comprador) os produtos bons e de qualidade aos poucos deixam de ser ofertados e “saem” desse mercado em busca de um lugar onde sua competitividade pode ser melhor reconhecida.
No caso de carros com defeitos conhecidos, mas que só vão ser percebidos pelo comprador algum tempo depois, Akerlof determinou que essa “assimetria de informação” ( quando um lado possui mais informação que a sua contra-parte em uma transação ) é um dos fatores determinantes para que produtos bons fossem ( ou não ) comercializados naquele marketplace, pois esses conseguiriam ( ou não ) se diferenciar dos produtos com menor qualidade e defeitos escondidos.
As dinâmicas subsequentes de erosão da confiança naquele marketplace fazem com que produtos de qualidade superior não sejam oferecidos naquele mercado até que eventualmente só sobrem produtos de qualidade inferior ( e na grande maioria das vezes produtos cujos defeitos são escondidos do comprador ), ou seja os únicos produtos que acabem por permanecer naquele mercado são os que não conseguem um valor maior em outro marketplace senão naquele, inevitavelmente decretando o fim daquele marketplace.
No diagrama acima, está descrita a relação dinâmica onde quanto menor a listagem de produtos de qualidade, mais produtos de qualidade duvidosa “sobram” no marketplace, o que gera menos confiança entre os agentes do marketplace, o que estimula menos transações, o que estimula menos vendedores a listarem produtos de qualidade naquela plataforma, inevitavelmente levando a ruína daquele marketplace.
Vale ressaltar que esse ciclo poderia ser virtuoso também, por exemplo: quanto maior a listagem de produtos de qualidade, menos produtos de qualidade duvidosa figuram no marketplace, mais confiança entre os agentes do marketplace existe, mais transações são feitas, o que estimula mais listagem de produtos de qualidade, fechando assim um ciclo virtuoso para aquele marketplace.
O marketplace da Enjoei por ser um focado em produtos de segundo uso está especialmente predicada nas relações de confiança dos atores que participam da sua plataforma. A confiança é manifestada em diversos aspectos, mas especificamente a confiança de que os produtos listados são de qualidade o suficiente para um “segundo uso”, assim como são produtos críveis ( no sentido, de serem exatamente o que é anunciado ao ser vendido ) sendo essa a base da relação da plataforma. Essa dinâmica é descrita pelo loop abaixo
Conforme o catálogo de produtos da Enjoei aumenta, assim aumenta a necessidade de curadoria e verificação do sortimento para garantir que os “limões” sejam expurgados da plataforma, senão o ciclo vicioso descrito anteriormente começa a operar na plataforma, onde, conforme a tese do Akerlof, os produtos “bons” vão sair da plataforma e serão transacionados em outro lugar, essencialmente decretando o fim do Enjoei como conhecemos hoje.
Como a Enjoei pode sair dessa dinâmica?
Uma das principais atribuições do intermediador em um marketplace como a Enjoei, é garantir a confiança entre os seus agentes, assim como estabelecer e manter a sua reputação de um marketplace confiável. Por isso, não existe caminho diferente para a geração de valor sustentável na Enjoei que não seja apoiado pela garantia das regras e “fair play” em todas as transações do marketplace, e isso implica em um sistema de curadoria que escale (leia-se, que provavelmente não dependa de humanos para escalar), assim como uma politica implacável em detectar e expurgar os vendedores “maçãs podres” da plataforma, garantindo um ecossistema saudável para os agentes com interesse investido na dinâmica da plataforma.
O resultado provável caso a Enjoei não tome nenhuma das duas ações acima em relação a produtos falsificados listados em sua plataforma vai ser o êxodo de produtos de qualidade da sua plataforma, o que inevitavelmente vai fazer com que os seus clientes de qualidade procurem outra forma ( e lugar ) para transacionar. Além disso, enquanto essa dinâmica não acontece, o segundo resultado provável é que ações legais comecem a vincular cada vez mais a plataforma na direção de ressarcimento por conta das perdas incorridas por seus usuários e clientes em compras de produtos falsificados.
Dito isso, quais são as melhores hipóteses de produto para a Enjoei evitar o cenário acima:
Curadoria automatizada em escala utilizando inteligência artificial ( ou next best thing: a curadoria utilizando humanos, porém esse movimento vai forçar um aumento de custo na operação da Enjoei, second next best thing: uma rede de entidades autônomas que sejam garantidoras da qualidade de alguns produtos listados - por exemplo: no caso da bolsa citado no inicio do artigo, a próprio Dior poderia por meio de uma parceria apoiar no aferimento da qualidade daquele produto listado e talvez atrelar essa validação a um modelo nos moldes do trade-in do artigo anterior. )
Banimento e punição em massa dos atores que sistematicamente listam produtos falsificados, assim como ações legais em cima dos mesmos, gerando um efeito de severidade legal proporcional para desencorajar que mais atores ruins entrem na plataforma com esse intuito.
Se existir uma dificuldade de operação para conseguir validar todos os produtos da plataforma, a Enjoei poderia estabelecer um “selo de qualidade” para os produtos que ela consegue verificar, de acordo com a sua capacidade. O EnjuPRO tem um pouco dessa dinâmica, mas ainda é um serviço iniciando dentro da plataforma, e a quantidade de produtos que serão listados via EnjuPRO vs. a listagem normal será muito pequena para fazer alguma diferença inicialmente.
Um modelo de "denuncia” amplamente aplicado na plataforma, onde atores da plataforma podem ajudar a denunciar produtos listados que aparentem ser falsificados ( por exemplo: um artigo de uma marca de luxo listado por um preço absurdamente abaixo do que normalmente seria listado - mesmo que usado ). Aqui temos um ponto pertinente onde o engajamento da rede Enjoei pode servir como uma solução “crowdsourced” para ajudar a expurgar os produtos falsificados da plataforma.
Garantia de qualidade ao listar um produto, onde o vendedor tem a incumbência de “provar” a autenticidade do produto, e por conta disso, equalizando a assimetria de informação em relação ao comprador. Seja a partir de informações complementares sobre o produto ( como vídeos e fotos das etiquetas, notas fiscais e recibos da compra do produto, números de serie verificáveis na fonte produtora e outros artifícios do tipo ).
De qualquer jeito, na minha avaliação a dinâmica de perda de reputação de um marketplace, somada ao ímpeto de aumentar o sortimento da produtos da Enjoei é a maior ameaça de médio prazo para o posicionamento da empresa no mercado.
The End
Esse foi o terceiro e último post da série sobre o posicionamento estratégico da Enjoei. Espero ter coberto aspectos diversos o suficiente dessa empresa, não especificamente para fazer um escrutínio sobre ela, mas sim para ilustrar para pessoas que trabalham com produtos digitais os aspectos mais amplos que afetam as decisões de produtos que um time tem que tomar no seu dia a dia.
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Dessa vez a Produto pelo mundo falou com o Senior Product Manager no eBay Alemanha, Christopher Correia. Se você tem interesse em conhecer como o eBay organiza seus times de desenvolvimento de produto, maiores desafios na Europa, cultura, concorrência e processo de contratação, escuta até o fim que tá valendo. =)
Inclusive, na quinta-feira dia 11/março fizemos uma conversa no Clubhouse com o Chris Correia e entre diversos temas discutidos falamos um pouco sobre a estratégia da eBay de explorar algumas verticais, especificamente falando sobre a venda de artigos para colecionadores ( por exemplo, venda de Air Jordans de colecionadores para colecionadores pelo eBay ), essa conversa lançou uma luz super interessante sobre esse artigo. Recomendo bastante escutarem o podcast.
https://produtopelomundo.captivate.fm/episode/17-christopher-correia-no-ebay-berlim