Incentivos e comportamentos - Parte 2
Incentivos, metas e soluções que agravam os problemas de um sistema dinâmico e complexo
Uma descrição genérica de um sistema de incentivos e metas
De maneira geral um sistema orientado a estimular que algum agente atinja alguma meta/target pode ser representado com o diagrama abaixo:
Existe um target ( ou meta ) a ser atingido, esse target é calculado a partir de um patamar existente ( chamado aqui de actual ), a diferença entre o target e o actual gera um gap a ser preenchido.
Um dos efeitos do gap é causar uma pressão para a geração de resultados. Essa pressão ( não apenas no sentido literal ) estimula o comportamento na direção esperada movendo partes de uma organização até o atingimento de seus objetivos.
Por exemplo, considere o cenário abaixo: Uma empresa entregou no ano fiscal passado USD$ 800MM em vendas ( actual ), para o ano seguinte a diretoria da empresa decidiu aumentar em 20% a meta de vendas em relação ao patamar atual ( target ). A equipe comercial passa a ter uma meta de USD$960MM para o próximo ano fiscal.
A diferença entre o target e o actual, neste caso, é de USD$160MM. Se esse valor for considerado difícil de ser atingido ( talvez por conta de um cenário econômico desfavorável ou por causa da entrada de um competidor ), a pressão percebida pela equipe comercial vai ser grande.
Quanto maior for essa pressão, mais estimulada estará a equipe comercial para criar ações e iniciativas para aumentar o realizado, por consequência fechando o gap.
Acima esquerda: o ciclo genérico de goal seeking. Acima direita: o mesmo ciclo aplicado a lógica de meta de vendas, substituindo o actual por um estoque de vendas executadas em um período, e incluindo as variáveis ticket médio e qtd. de clientes que obviamente influenciam o fluxo de novas vendas.
O ciclo acima gera como padrão de comportamento uma curva que tende em direção a um target. Por exemplo, se exercitarmos uma situação mais extrema ainda, onde a equipe comercial tem que sair de um actual de USD$100MM no ano para um target de USD$960MM, esse é o comportamento que encontramos das principais variáveis envolvidas neste sistema1:
Reparem como a curva actual no primeiro gráfico tende em direção ao target conforme o gap vai diminuindo por conta das ações efetivas da equipe de vendas para fechar o gap, o que proporcionalmente vai diminuindo a pressão que aquele target gera nos agentes envolvidos.
Se fossemos simular o efeito ao longo de 48 meses ( 4 anos ) de um processo de meta de vendas que a cada final de ano fiscal aumenta o target em 20% em relação ao ano anterior para estimular continuamente que a equipe de vendas busque cada vez uma meta maior, teríamos o seguinte comportamento das curvas de target, actual, gap e pressão ao longo do tempo:
Acima: A pressão aumenta a cada 12 meses ( simulando o planejamento do ano fiscal ) e diminui conforme o actual vai se aproximando do target e fechando o gap, chegando no seu menor patamar neste cenário conforme a equipe comercial vai conseguindo atingir a meta. E reparem também que o target aumenta ao final de 12 meses sinalizando o novo target anual a ser perseguido. Você pode usar esse modelo clicando neste link
Em um segundo exemplo, desta vez focado em um serviço digital que esteja apresentando muitos incidentes em produção, a mesma lógica pode descrever os incentivos para diminuir em 50% a quantidade destes incidentes:
No caso acima, o target de redução de incidente é de 50% em relação ao actual, o que vai gerar pressão para resultados, que estimularia ações e iniciativas para diminuir a quantidade de incidentes ( seja aplicando boas práticas de desenvolvimento de software, melhorias no processo de garantia de qualidade ou outros ), o que diminuiria o gap entre o target e o actual, diminuindo a pressão e estabilizando o sistema.
Em um último exemplo, podemos explorar como a expectativa da liderança em relação ao preço target da ação desta empresa pode guiar o comportamento correto ( ou equivocado ) ao longo do tempo.
Se a liderança da empresa entende que o mercado e investidores tem uma visão de curto prazo para apreciar o seu valor, e entende que gerar um resultado com mais margem dentro de um ano fiscal vai fazer com que a ação seja valorizada, a liderança poderia estimular o comportamento abaixo.
No diagrama da esquerda: quanto maior o gap entre o preço atual da ação e o target, maior a pressão para fechar o gap, se a visão for de curto prazo a liderança poderia reduzir os gastos com manutenção e treinamento de funcionários dentro do ano fiscal, o que melhoraria o resultado financeiro da empresa no curto prazo, algo que poderia levar a apreciação do preço da ação da empresa no mercado.
Por outro lado, no diagrama da direita, vemos que o efeito no médio/longo prazo da redução de gastos contínua em manutenção e treinamento faz com que as capacidades operacionais da empresa no médio/longo prazo se deteriorem, e com essa deteriorização pior vai ser o resultado da empresa, afetando negativamente o preço da ação, gerando um ciclo nefasto na empresa ao longo do tempo.
Podemos aplicar esta mesma lógica de goal seek utilizando a abordagem de target/actual/gap em diversos cenários onde buscamos o alcance de uma meta: aumento de qualidade, expectativa de produtividade, satisfação do cliente.
No entanto existe um porém, como já vimos nos exemplos anteriores, um sistema que se equilibra orientado a um target tem o potencial de gerar consequências indesejáveis, como foi o caso da Wells Fargo e o seu sistema de cotas de vendas agressiva, onde a intervenção para trazer mais vendas acabou piorando a situação no médio/longo prazo, como veremos a seguir, essas são as chamadas correções que pioram o problema.
Fixes that fails…
Para ilustrar esse arquétipo de comportamento em sistemas dinâmicos e complexo, vamos explorar um cenário que encontramos comumente onde uma empresa que está percebendo uma queda nas vendas de um produto decide fazer uma campanha de marketing agressiva, baixando os preços em uma promoção, assim aumentando o awareness para estimular a demanda e resolver o problema original.
Se esta abordagem for um artifício utilizado apenas esporadicamente é razoavel assumir que teremos algum sucesso e não desestabilizaremos tanto o contexto da empresa.
O problema acontece se essa pratica se tornar a regra para se lidar com o problema de vendas ao longo do tempo: os consumidores podem realizar que a atratividade do produto só se dá por conta das promoções, descontos e campanhas de marketing, algo que depois de um tempo ( delay ), pode aos poucos ir deteriorando a imagem do produto, o que afeta negativamente as vendas, ou pelo menos as deixa condicionada a ciclos constantes de promoção para estimular a demanda, gerando uma solução que agrava ainda mais o problema original de vendas.
Em um contexto construtivo com uma cultura predicada em valores sustentáveis, quanto maior o gap, maior deveria ser o estimulo para a equipe comercial desenvolver a sua capacidade: criando novas ofertas, estabelecendo parcerias para agregar mais valor ao cliente, aumentando os canais de vendas, entre outras alavancas possíveis.
Em um contexto que estimula um comportamento insustentável no médio/longo prazo problemas graves podem acontecer.
Acima: diagrama exemplificando a dinâmica descrita acima onde para lidar com a queda das vendas aplica-se uma politica constante de promoções que no medio/long prazo podem gerar o efeito contrário: a demanda fica condicionada a estes incentivos para acontecer
Esse arquétipo em dinâmica de sistemas complexos é chamado de fixes that fail, onde para se corrigir um problema no curto prazo você acaba gerando outros problemas no médio/longo prazo, normalmente voltando a estaca zero, é quase como se estivéssemos tentando resolve um problema em um motor colocando mais óleo na engrenagem para que ele performe mais uma vez.
Em outras palavras: é onde tratamos os sintomas/efeitos (em vez de focar nos problemas subjacentes) gerando efeitos indesejados por conta desta intervenção.
Um outro exemplo comum do arquétipo descrito acima acontece quando temos um item no backlog que seja urgente e que esteja atrasado. Uma solução neste caso seria fazermos um expedite para acelerar a priorização daquele item, essencialmente furando a fila.
Isso de fato resolve o problema no curto prazo, no entanto, a disrupção no processo de desenvolvimento/produção e mudanças de prioridade faz com que outros itens que estejam no backlog fiquem mais atrasados ainda, gerando uma situação pior no médio/longo prazo, novamente.
Além disso, ao tratarmos o atraso (sintoma) com uma boa dose de expedite (solução) estamos essencialmente ignorando a natureza sistêmica que talvez tenha gerado o atraso e a necessidade deste expedite em primeiro lugar.
Como a causa permanece é bastante provável que os seus sintomas sejam experimentados novamente no futuro, e assim o ciclo se repete tornando a condição crônica.
No terceiro artigo da série vamos explorar como podemos equilibrar os incentivos em um sistema para evitar que apenas uma das variáveis seja otimizada, especialmente, se a otimização acontecer em detrimento de outras variáveis importantes que afetam o todo.
Este comportamento da curva seria igual se a meta fosse de USD$960MM e o actual de USD$800MM, apenas o comportamento da curva ficaria menos perceptível devido a proximidade entre os dois números.