Incentivos e comportamentos - Parte 3
Freios e contrapesos para estimular o comportamento correto em um sistema dinâmico e complexo
“Tell me how you will measure me, and then I will tell you how I will behave. If you measure me in an illogical way, don’t complain about illogical behavior.”
No final do último artigo exploramos o arquétipo em sistemas dinâmicos e complexos chamado de fixes that fail, onde o interventor trata o sintoma ignorando a sua causa sistêmica, o que potencialmente acaba agravando o problema no médio/longo prazo.
Uma boa forma de explorar esse desafio conceitualmente é avaliar como a medicina lida com o processo de diagnóstico e intervenção no paciente sendo tratado.
fonte: Improving diagnosis in healthcare (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK338593/#!po=35.4962)
O caso clássico é o tratamento de uma dor de cabeça, para o qual um simples remédio já é capaz de aliviar o sintoma, revigorando o paciente e “resolvendo o problema”.
Se a dor de cabeça é persistente e aguda, ela pode estar sendo causada por aspectos mais sistêmicos do corpo do paciente, tratar apenas aquele sintoma, talvez até com remédios mais potentes, simplesmente vai aliviar o sintoma imediato sem endereçar as causas estruturais do problema.
Um tratamento mais eficaz, especialmente no caso de uma crise ( como é o caso que normalmente justifica uma visita ao hospital ), endereçaria o sintoma imediato causando alivio no paciente, mas também focaria nos aspectos estruturais que causam a condição do paciente.
Além disso, por se tratar de um sistema dinâmico e complexo como é o corpo humano, o médico e a sua equipe estabelecem alguns mecanismos de feedback para calibrar a sua decisão de intervenção e validar empiricamente os efeitos desejados e indesejados no paciente, muito similar ao diagrama abaixo:
fonte: Improving diagnosis in healthcare (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK338593/#!po=35.4962)
Essa abordagem mais integral para o tratamento de pacientes é prática comum na medicina e serve como uma boa introdução para o tema de equilíbrio de incentivos em sistemas dinâmicos e complexos.
Ou seja, não adianta o médico otimizar uma variável sem considerar os impactos da intervenção no sistema como um todo e avaliar os trade-offs, custos e benefícios entre as opções disponíveis ( por exemplo, reduzir a dor do paciente até um patamar aceitável utilizando um medicamento forte porém afetando o seu sistema renal negativamente e possivelmente causando adicção no médio/longo prazo )
Equilibrando incentivos para balancear os resultados
Uma abordagem muito comum para equilibrar os incentivos em um sistema é o estabelecimento de freios e contrapesos para evitar que apenas uma variável seja otimizada em detrimento de todas as outras.
Esse equilíbrio deve levar em consideração os objetivos da empresa, área ou produto de uma maneira integral, por exemplo:
meta de vendas equilibrada com satisfação do cliente
satisfação de funcionários equilibrada com o revenue per employee
frequência de release equilibrada com a taxa de mudanças com falhas
Na modelagem abaixo conectamos dois sistemas de incentivos para criar uma dinâmica de freios e contrapesos entre vendas e satisfação do cliente, onde as ações e iniciativas para gerar vendas afetam também o actual de satisfação.
Se o actual de satisfação for afetado positivamente, essas ações de vendas estão ajudando a fechar o gap de satisfação em relação ao target estabelecido pela empresa, e isso é ótimo!1
Por outro lado se as ações e iniciativas para gerar vendas estiverem afetando negativamente o actual de satisfação, então um ciclo estará afetando negativamente o outro, e mais cedo ou mais tarde encontraremos problemas sistêmicos na empresa, independente se uma das metas venha a ser alcançada.
Nesta modelagem o inverso também é verdade, criamos uma relação entre as ações e iniciativas com foco na satisfação do cliente que se deixarem de ser executadas podem impactar negativamente a capacidade de venda da empresa, aumentando desta vez o gap de vendas, que por sua vez aumenta a pressão na equipe comercial para gerar resultados, e em muitos casos sabemos que isso pode levar a cenários bem negativos no médio/longo prazo.
Reparem que esse modelo de freios e contrapesos pressupõe que a empresa tenha e acompanhe um target de vendas assim como um target de satisfação do cliente. Se por acaso, ela não possuir um target de satisfação do cliente mas apenas o de vendas, os resultados podem ser descompensados em direção a vendas em detrimento da satisfação do cliente, por exemplo.
Vamos explorar um segundo exemplo: como resultado do DORA Research Program foram mapeados diversos aspectos sistêmicos que melhoram a qualidade da performance organizacional dentro do contexto de desenvolvimento de produtos e serviços digitais.
A figura abaixo exemplifica alguns dos achados, entre eles continuous delivery gera menos burnout e menos dificuldades na hora do deployment, assim como a facilidade de se entregar software em produção estimula uma maior frequência de releases, o que estimula lotes menores, o que acaba gerando um tamanho menor de retrabalho em potencial, por exemplo
Se olharmos o que é chamado de métricas do DORA ( frequência de release, leadtime para mudança, taxa de falha de mudança e tempo para restaura o serviço ), elas funcionam muito bem em conjunto, justamente pois compõem um sistema de incentivos que quando equilibrados entre si, geram um resultado positivo no sistema como um todo.
Por exemplo, abaixo vemos um ciclo virtuoso entre a confiança para se fazer mudanças no ambiente produtivo e a frequência de release. Quanto maior a confiança para fazer mudanças, mais estimulados estaremos para lançar mudanças e quanto mais frequentemente lançamos mudanças, maior é a confiança para fazer mudanças.
Além disso, quanto menor o tamanho do lote das mudanças que serão feitas, maior é a confiança em se fazer mudanças, algo que por sua vez estimula uma maior frequência de release.
Vale lembrar, como quase sempre, que o inverso também é verdadeiro: quanto maior o tamanho do lote, menor tende a ser a confiança para se fazer mudanças, o que estimula uma frequência menor de releases, o que piora mais ainda a confiança de se fazer mudanças.
Abaixo está exemplificado um diagrama sobre como um sistema de incentivos focando no target/actual de duas métricas do DORA podem gerar um equilíbrio e um sistema de freios e contrapesos que é positivo para o sistema como um todo:
Por tanto, se colocarmos um target para frequência de release, por exemplo, semanal para um software onde o actual é de 1 release a cada 6 meses, deveríamos equilibrar esse incentivo com um target da taxa de mudanças com falha que seja baixo, estimulando que as ações para se aumentar a frequência de release não gerem muitas mudanças com falhas disruptando a qualidade do serviço.
Talvez aqui seja um bom momento para falarmos brevemente sobre o desafio de silos departamentais, conflito de interesses e bonus atrelado a uma meta: em muitos contexto organizacionais uma parte da empresa é responsável, por exemplo, pela meta de vendas, enquanto outra parte da empresa é responsável, por exemplo, pela satisfação do cliente.
Enquanto esse desenho organizacional e de metas tenha os seus benefícios e a compartimentalização de responsabilidades ajude no ganho de escala, se a cultura da empresa não estimular um entendimento compartilhado entre os objetivos que esteja sendo perseguido, problemas podem aparecer.2
Por último ( e vamos falar mais disso nos próximos artigos ), em muitos casos é uma boa prática atrelar bonus a metas, por exemplo, em equipes comerciais e de vendas isto é um comportamento bastante comum e saudável em muitos casos.
No entanto, para alguns tipos de objetivos, especialmente aqueles que envolvam algum nível de experimentação, criatividade, descoberta, assim como se tiverem uma certa dificuldade de mensuração, e que tenham a característica de serem perseguidos coletivamente ( em times por exemplo ), normalmente por envolver práticas novas ou a fronteira de um conhecimento dentro da empresa, efeitos negativos podem acontecer ao se atrelarem recompensa financeira a metas, especialmente se eles não forem equilibrados para evitar incentivos perversos como vimos nos artigos anteriores.
Exploramos neste artigo como desenhar alguns sistemas equilibrados de metas com o objetivo de aplicar freios e contrapesos neste sistema dinâmico e complexo com o objetivo de evitar que apenas uma variável seja otimizada em detrimento de outras.
No próximo artigo vamos explorar como podemos criar um sistema de incentivos e metas para guiar um comportamento de melhoria continuada em um sistema dinâmico e complexo.
Reparem que em alguns casos a empresa não mede, por exemplo, a satisfação do cliente de uma maneira sistemática, porém ela possui uma meta de vendas, ou seja, o target de vendas guia o comportamento dentro da empresa mas não é contra-balanceado por um target de satisfação, a tendência é que um prepondere sobre o outro.
Um lado da empresa vai tender a otimizar uma variável enquanto outro vai tender a otimizar outra variável, e se não houver comunicação, transparência e colaboração entre ambos, o potencial de geração de resultado da empresa pode ficar debilitado. Esse conflito de interesse ( e incentivos ) é algo que comumente congestiona as empresas e cria uma enorme ambiguidade em relação aos objetivos perseguidos, as ações que deveríamos executar para alcançá-lo e como uma coisa impacta a outra, e como isso tudo impacta o todo.