Hiper crescimento em produtos e serviços digitais e os limites para o sucesso - parte 4
Impactos na estrutura organizacional e cultura
Durante o processo de crescimento acelerado de uma empresa de produtos ou serviços digitais é bastante comum observarmos um movimento expansivo de recrutamento de pessoas seja para atividades de vendas, atendimento ao cliente, operações, tecnologia e outros.
Se nos artigos anteriores nós exploramos os desafios para o crescimento acelerado em aspectos do atendimento ao cliente e o tempo de entrega, os impactos em dívida técnica e na performance da infra-estrutura, neste artigo vamos explorar os impactos de se escalar aceleradamente a estrutura organizacional e as dificuldades para se evitar um congestionamento e a baixa eficiência inerente a rápida escalada do número de pessoas em uma organização.
Mas antes precisamos falar sobre a natureza não linear da quantidade de possíveis relações entre um grupo de pessoas conforme o seu número aumenta.
A lei de Metcalfe
Originalmente formulada por Bob Metcalfe ( inventor do protocolo Ethernet e co-fundador da 3Com ) para explicar o valor de uma rede em função da quantidade de nós que ela consegue conectar, a tese postula que o valor de uma rede é proporcional ao quadrado do números de usuários pertencentes aquela rede.
A lei de Metcalfe mostra que a quantidade de conexões possíveis entre pontos em uma rede cresce de maneira não linear conforme mais pontos são adicionados a esta rede, e por isso o valor daquela rede aumenta em função da quantidade de conexões possíveis a serem estabelecidas ( por exemplo, pense no WhatsApp e no quão cômodo e valioso é o fato de que grande parte dos brasileiros com smartphones são acessíveis por quem fizer parte desta rede ).
Aplicando essa mesma lógica para a estrutura organizacional e a rede de funcionários de uma empresa conforme o desenho abaixo, podemos ver que a medida em que uma estrutura organizacional vai crescendo a quantidade de possíveis linhas de conexão entre os seus membros é afetada de maneira não linear gerando diversos desafios para a coesão e eficiência de um grupo.
fonte: Solve communication complexity with networks of small teams por Corporate Rebels
Para cada nó adicionado a rede, aumentamos o número de conexões possíveis, e com um número relativamente baixo de membros em uma equipe, por exemplo com 10 pessoas, temos um número surpreendentemente grande de possíveis linhas de interação entre elas, 45 possíveis conexões.
Essa característica é uma das causas de diversas dificuldades de se escalar ( e se manter ) uma estrutura e cultura organizacional no médio/longo prazo em um cenário de crescimento acelerado
Impactos na estrutura organizacional
Uma empresa em crescimento acelerado normalmente possui diversas atividades que precisam ser executadas e oportunidades que podem ser capturadas como consequência do crescimento.
É razoável assumir que tanto as oportunidades quanto as atividades, projetos ou iniciativas a serem executadas crescem junto com a empresa, o que invariavelmente causa a necessidade de recrutamento de novos funcionários para executar diversas funções dentro dela.
Neste contexto, uma parte do desafio de escala é descrito pela Lei de Metcalfe, onde quanto maior a quantidade de pessoas recrutadas e pertencentes ao headcount da empresa, maior a densidade das possíveis interações entre elas gerando uma maior complexidade organizacional, o que potencialmente impacta a produtividade negativamente1 ao mesmo tempo em que implica em aumentar a necessidade de coordenação, sincronização e gestão - o que deveria ter um impacto positivo na produtividade, na maioria dos casos. 2
De maneira simplificada podemos visualizar esse sistema da seguinte forma:
Acima: conforme a quantidade de atividades que precisam ser executadas cresce ( sejam elas de qualquer natureza que forem ), maior é a pressão para se recrutar novos funcionários para absorver e executar essas atividades, essa pressão aumenta o fluxo de new joiners, aumentando o headcount da empresa, quanto maior a quantidade de pessoas, maior a densidade das possíveis interações entre elas, maior a complexidade organizacional, o que potencialmente impacta a produtividade negativamente ao mesmo tempo em que implica em aumentar a necessidade de gestão e coordenação.
Conforme a estrutura organizacional cresce, maior é a necessidade de novos processos, sistemas, normas, práticas, coordenação, sincronização e alinhamento, o que tipicamente implica em uma camada de coordenadores/gestores para garantir o funcionamento regular entre as diferentes áreas da empresa e níveis hierárquicos.3
Enquanto a empresa se esforça para acomodar esse aumento de headcount, e uma nova forma de trabalho adaptada a esta escala não é estabelecida, o resultado mais comum é a perda de produtividade no curto prazo e o congestionamento da estrutura organizacional, muitas vezes causando a sensação de que estamos gerando menos resultados embora tenhamos mais pessoas dentro da empresa para executar as atividades
Em muitos casos de empresas em hiper crescimento que estejam recrutando massivamente em um curto espaço de tempo, o que experimentamos é algo similar a imagem acima.4
Em uma simulação do modelo acima considerando o crescimento acelerado de uma empresa e um crescimento da quantidade de atividades a serem executadas ao longo do tempo, conseguimos simular a pressão para recrutamento e um aumento significativo de headcount.
Utilizando a formula abaixo conseguimos calcular a quantidade de interações possíveis e o potencial para o congestionamento da empresa conforme o headcount aumenta, de acordo com a Lei de Metcalfe:
densidade de conexões = headcount*(headcount-1)/2
Com essa simulação, podemos ver claramente o aumento da densidade das possíveis interações entre os membros da empresa (eixo-x lado direito) em função do crescimento de headcount (eixo-y lado esquerdo), levando ao congestionamento e baixa produtividade no curto prazo, o que estimula o aumento das camadas de gestão e coordenação.
Acima: conforme o número de headcount aumenta ( eixo-y lado esquerdo ) vemos um aumento acelerado na quantidade de interações possíveis entre todas as pessoas da empresa ( eixo-y lado direito )
Infelizmente não experimentamos apenas o efeito de congestionamento, mas também é comum o distanciamento cultural entre os primeiros funcionários da empresa e os grupos de novos funcionários originários dessas ondas posteriores de expansão via recrutamento.
Para falarmos um pouco mais sobre esse fenômeno, precisamos entender primeiro alguns conceitos sobre como pessoas formam seus grupos mais próximos nas suas rede sociais e pensar sobre alguns modelos que descrevem culturas organizacionais.
Número de Dunbar e modelos de cultura organizacionais
O número de Dunbar descreve o tamanho máximo (em média) de uma rede social de um indivíduo com o qual ele consegue manter relações sociais estáveis simultaneamente ao longo do tempo:
O número ajuda a descrever limites “naturais” para a quantidade de relações sociais que conseguimos manter concomitantemente e nos fornece algumas indicações sobre como a cultura de uma empresa é impactada em um cenário de crescimento acelerado.
“Understanding and deconstructing the hierarchy of social group structures has been a major focus of attention in sociology and anthropology for more than fifty years, but it was only in the last twenty or so that some of their quantitative features have become apparent. Some of this has been driven by the work of the evolutionary psychologist Robin Dunbar and his collaborators, who proposed that an average individual’s entire social network can be deconstructed into a hierarchical sequence of discrete nested clusters whose sizes follow a surprisingly regular pattern.
The size of the group at each level systematically increases as one progresses up the hierarchy from, say, family to city, while the strength of the bonding between people within groups systematically decreases. So, for example, most people have a very strong connection with their family members but only a very weak one with the bus driver or members of the city council”
fonte: Scale, the universal laws of life, growth, and death in organisms, cities and companies, por Geoffrey West
Existem indícios de que a cultura de uma empresa é determinada pelos valores e características comportamentais dos seus primeiros funcionários, que estabelecem os seus principais pilares, padrões de comportamento, artefatos e modelos mentais com o qual aquele grupo mantem sua coesão interna e interage com o mundo exterior.
fonte: adaptado a partir do trabalho de Edgar Schein sobre cultura organizacional
O desafio para empresas em crescimento acelerado é conseguir conciliar os efeitos que discutimos ao longo deste artigo: conforme o crescimento de headcount acontece, entendemos que a densidade de possíveis interações aumenta, estimulando novas formas de organização com objetivo de lidar com a complexidade e aumentar a eficiência.
Por outro lado, sabemos que o número de Dunbar estabelece um limite natural para a quantidade de relações sociais estáveis que conseguimos manter simultaneamente, e logo faz com que inevitavelmente tenhamos diferentes tribos com suas sub culturas dentro de uma empresa a partir de um certo número de pessoas.
O somatório dessas e outras forças durante o crescimento acelerado de uma empresa, leva em muitos casos ao surgimento de uma rede social a partir das interações dos novos e antigos funcionários, com os seus diferentes modelos mentais, valores, e premissas que se misturam a cultura original da empresa estabelecendo novos aspectos culturais que podem ou não ter encaixe com o objetivo estratégico da empresa naquele momento.
Essa escalada rápida coloca mais pressão na gestão para conseguir estabelecer, reforçar e evoluir as instituições culturais da empresa, integrar ou dissolver pontos de conflito ou ambiguidade, tarefas essas que se não forem empreendidas com sucesso podem significar um novo conjunto de valores e comportamentos que passam a ser a “nova” cultura da empresa.
No próximo artigo vamos falar sobre o impacto que o excesso ou a escassez de capital tem em empresas em um cenário de crescimento acelerado.
Existem, obviamente, aspectos bottom up e características de auto-organização, práticas emergentes, e o uso de tecnologia como habilitadores de autonomia em escala, no entanto, a partir de um certo tamanho e com os incentivos que a maioria das empresas possui hoje, existe uma tendência em direção a camadas de gestão e coordenação para abstrair a complexidade, especialmente na forma como empresas são concebidas e estruturadas no inicio do século XX.
Obviamente nem todo mundo precisa interagir com todo mundo dentro de uma empresa, mas o crescimento acelerado da densidade das interações deixa muito explícito os pontos de gargalos e ineficiência: dificuldade de comunicação unificada com todos da empresa, pontos de gargalos em serviços compartilhados e atividades de suporte da empresa ( desde a obtenção de crachá, até obtenção de máquina e gestão de acessos e assim por diante ), dificuldade do grupo se mover de maneira unificada em uma direção
Existem formas de se evitar que o “scaling” aconteça apenas com pessoas, e existem formas mais eficientes do que outras de se organizar, no entanto para uma operação de negócio relevante o suficiente é extremamente difícil fazê-lo sem utilizar a alavanca mais óbvia que é o aumento de headcount. Inclusive, em muitos casos de empresas em crescimento acelerado e com investimento, o crescimento de headcount ( especialmente na área de tecnologia ) é muitas vezes estimulado e visto de maneira atrativa para novas rodadas de investimento, independente da sua eficácia.
Eu já explorei em outros artigos que essa escalada acelerada de recrutamento causa outros efeitos sistêmicos, como por exemplo, a escalada de compensação, pessoas em papeis e cargos além da sua capacidade, as altas taxas de attrition na empresa e na indústria como um todo.