Sobre a competição por talentos no mercado de tecnologia - Parte 3 - Perspectiva dos talentos e possíveis intervenções
Veja também a parte 1 e a parte 2 dessa série de artigos.
A perspectiva do talento
Modelar o comportamento humano é uma atividade desafiadora, principalmente porque raramente o ser humano se comporta de maneira perfeitamente racional ( homo economicus ). No entanto nas últimas décadas tivemos diversos avanços sobre o que motiva pessoas, especificamente no ambiente de trabalho, a agirem de certa forma e tomarem certas decisões dentro daquele contexto.
As abordagens mais recentes que jogam uma luz sobre esse tema tem se desenvolvido a partir de pesquisas como as de Daniel Kahneman, complementadas por estudos sobre o que motiva as pessoas em um ambiente de trabalho, assim como sobre a forma que líderes interagem e confiam em seus liderados sobre o prisma de contratos relacionais e a sua ótica sobre melhores formas de trabalho, o papel do propósito de uma empresa e como ela aborda o tema de segurança (física e psicológica ) impactando na motivação e engajamento dos funcionários.
Tudo começa com um gap entre a percepção da condição atual do talento em relação a percepção sobre as oportunidades disponíveis no mercado e no futuro.
O diagrama acima ilustra bem essa dinâmica: o gap entre a percepção sobre a condição atual de um talento e a percepção sobre a oportunidade futura é uma das principais coisas que determina a sua satisfação com a condição atual e a sua percepção sobre ela.
Obviamente, a percepção da condição atual deriva da sua satisfação e essa é determinada por diversos aspectos como por exemplo pela qualidade da liderança e o seu fit com a cultura da empresa, o seu propósito, a autonomia que o talento tem para executar o seu trabalho e influenciar/determinar a direção dos assuntos de sua responsabilidade, a capacidade de aperfeiçoamento e aprendizado oferecida, os riscos e segurança do ambiente de trabalho e obviamente a compensação recebida.
Todos esses fatores influenciam o nível de satisfação com a condição que um talento possui na sua empresa atual. Esse conjunto de fatores ( extrínsecos e intrínsecos ) determinam a percepção sobre a sua condição atual, e o eventual tamanho do gap em relação as oportunidades fora da empresa onde ele está.
Quanto maior é o gap em direção a oportunidades fora da empresa, maior é a propensão desse talento a ouvir e buscar novas oportunidades, o que aumenta a quantidade de propostas que ele recebe/busca, e considerando um cenário de escassez de talentos e alta demanda - ou seja, onde exista muita oferta de vagas a serem preenchidas, acabamos por consequência aumentando também a qualidade das propostas oferecidas para aumentar a sua atratividade utilizando muitas vezes os mesmos fatores descritos acima ( ex.: liderança, cargo, propósito da oportunidade, cultura, capacidade de aperfeiçoamento, compensação e etc… )
Eventualmente isso impacta a percepção do talento sobre as oportunidades futuras e fora da empresa, o que aumenta o gap e eventualmente diminui a sua satisfação com a sua condição atual na empresa onde está hoje.
Uma visão sistêmica do ciclo completo desde a demanda/disponibilidade de talentos, determinando a pressão por ofertas melhores e mais atrativas, o que aumenta o gap entre a percepção das oportunidades futuras e fora da empresa quando comparadas a condição atual do funcionário na empresa onde está, o que por sua vez determina a sua percepção ( positiva ou negativamente ) estimulando ou não com que ele se torne disponível no mercado.
O que temos visto, por exemplo no mercado de tecnologia nos últimos, é um padrão de comportamento similar ao descrito acima: tempo médio de estadia de um talento em um empresa entre 1-2 anos, progressão acelerada para cargos e papeis mais seniores, escalada de compensação para aumentar a atratividade, tudo isso abastecido por capital barato e de risco.
Pesquisas conduzidas pela Stack Overflow nos anos de 2019, 2020 e 2021 deixam claro esse comportamento, por exemplo em 2019 tivemos os seguintes resultados
Resumo dos gráficos: a grande maioria dos respondentes tem menos de 5 anos atuando profissionalmente, não está ativamente procurando por novas oportunidades mas está aberto a ouvir propostas mesmo estando muito ( ou ligeiramente ) satisfeito com o seu trabalho atual e provavelmente mudou de emprego nos últimos 2 anos.
Os resultados tendem a ser bastante consistentes com a pesquisa em 2020 e 2021, exceto pelo fato que em 2021 ( gráfico acima ) vimos um aumento do número de pessoas novas no mercado desenvolvendo profissionalmente, ao ponto que eles criaram a categoria “less than 1 year”, um comportamento esperado dado o aquecimento do mercado atraindo novas pessoas.
Ótima análise, now what?
O modelo mental predominante dos agentes neste sistema é um que estimula ações e intervenções com foco no curto prazo em detrimento de atitudes mais sustentáveis de médio/longo prazo: as empresas abordam a escassez de talento como um jogo soma zero e engajam na escalada de competição por talentos como a melhor estratégia.
As consequências são os padrões de comportamento descritos: baixo tempo médio de um funcionário em uma empresa ( tenure ), migrações em massa de pessoas de uma empresa para a nova empresa da moda e do momento a cada 2 anos ( coincidindo com os ciclos de obtenção de capital ), um fluxo de novos profissionais querendo entrar nesse mercado de trabalho para capturar a oportunidade oferecida ( gerando o boom de empresas de educação em tecnologia, assim como o movimento mais recente de aquisições e fusões das mesmas ), o profissional senior com 2-3 anos de experiência, uma desorganização em relação a cargos, papeis e funções como efeito das medidas desenfreadas de atração/retenção e falta de planejamento e know-how, assim como diversos outros padrões de comportamentos sistêmicos que emergem sob a forma de eventos visíveis na superfície.
Dado esse cenário, quais são as consequências no médio/longo prazo de intervenções que poderíamos fazer nesse sistema dinâmico e complexo para lidar com esses desafios? O modelo abaixo descreve, utilizando uma série de estoques e fluxos correlacionados, de maneira simplificada algumas das nuances que discutimos nos últimos artigos.
Um modelo dinâmico que consegue simular a relação entre empresas se transformando, aquisição de capital, abertura e preenchimento de vagas, e a relação de estoque e fluxo de talentos entrando no mercado, talentos disponíveis no mercado e talentos empregados.
Com esse modelo podemos simular algumas intervenções, por exemplo, o que acontece se as empresas dentro de uma indústria decidirem competir incansavelmente por talentos em uma escalada constante de compensação gerando uma dinâmica sistemática de turn-over em empresas, tenure médio baixo e todos os efeitos de dreno, diluição, pressão na gestão e erosão dos padrões de qualidade e senioridade das empresas que discutimos?
Resultado da simulação: O comportamento que vemos em algumas variáveis são os picos de compensação, alta volatilidade entre pessoas felizes com seus empregos e turn-over, um aumento de talentos disponíveis no mercado devido a atratividade de compensação, o que eventualmente vai causar over supply de talentos, causando uma queda na compensação média e provavelmente levando em uma década a um equilíbrio maior entre oferta e demanda por esse tipo de talentos ( potencialmente inclusive gerando desemprego )
Essa abordagem apesar de gerar resultados no curto prazo, acentua os efeitos negativos de performance e crescimento nas empresas dentro de uma indústria e pode ter consequências graves no longo prazo.
Uma segunda política que as empresas poderiam perseguir, por exemplo, pode ter as seguintes características: para cada vaga aberta procurando um profissional “pronto” no mercado, as mesmas deveriam abrir a mesma quantidade de vagas para treinar novos talentos no mercado ( juniores, estagiários e outros ), potencialmente mirando em grupos menos favorecidos e suportando o ciclo de educação por completo dessas pessoas ( desde infra-estrutura necessária, inglês, formação específica em algum skill escasso até a oferta/oportunidade dessas pessoas obterem os seus primeiros empregos), ou seja, um modelo mental, onde ao invés das empresas competirem em escalada pelos talentos, as empresas fomentem a formação sistemática dos mesmos ( independente se essas pessoas formadas irão ou permanecerão nas suas próprias empresas ou irão para o mercado ), causando uma disponibilidade maior de talentos, o que garante um caminho mais sustentável para o crescimento e performance das industrias e das empresas que as compõem.
Neste cenário simulado, mesmo que ainda tenhamos picos de compensação e alguma dinâmica de alto turn-over e tenure médio baixo de funcionários nas empresas, o ciclo transformacional se torna mais sustentável no médio/longo prazo causando padrões de comportamentos e eventos que sejam mais benéficos estruturalmente. Ou seja, em vez de observarmos a dinâmica transformacional como um jogo soma zero, podemos, de uma forma mais sustentável, cooperar de maneira mais explícita na indústria para evitar os comportamentos de erosão sistemática da qualidade dos produtos e serviços oferecidos assim como a satisfação e resultados pessoas envolvidas nesse ecossistema, especialmente no fomento e formação de mais talentos.
Takeaways
Movimentos transformacionais mais amplos em uma indústria são estimulados por mudanças de hábitos dos consumidores, inovações tecnológicas, novas perspectivas regulatórias e novos entrantes
Para uma empresa específica, após avaliada a necessidade de embarcar nessa jornada, o ciclo de financiamento passa a ser o motor da transformação: obter capital para financiar o programa transformacional e com isso trabalhar na aquisição e retenção de talentos para liderar a transformação
O jogo de competição por talentos no curto-prazo tende a ter uma característica de jogo soma zero, onde para um ganhar o outro necessariamente precisa perder. Isso estimula ciclos de escalada de compensação devido a falta de equilíbrio entre demanda e oferta de talentos disponíveis no mercado, o que estimula um ciclo contínuo de turn-over e retenção dos funcionários, o que coloca mais pressão ainda na compensação oferecida
Os efeitos no médio e longo prazo dessa dinâmica fazem com que a performance dos produtos e serviços oferecidos por uma empresa sofram uma erosão por conta do dreno de talentos, a diluição de talentos e aumento da pressão na gestão e pessoas seniores na empresa responsáveis por manter a cultura e a performance
Do ponto de vista dos talentos, o que vemos é uma dinâmica que gera um gap entre a satisfação e percepção da condição atual versus a percepção sobre as oportunidades futuras. Essa satisfação ou insatisfação é alimentada por diversos aspectos extrínsecos e intrínsecos, por exemplo: liderança, propósito, autonomia, aperfeiçoamento e aprendizado, cultura da empresa e obviamente compensação. Esse gap é o que determina grande parte do incentivo individual para se movimentar no mercado.
Utilizando um modelo dinâmico para simular o que vemos dentro desse contexto, analisamos duas políticas: acompanhar a escalada de compensação para competir pelos talentos escassos ou estimular o desenvolvimento e formação sustentável de novos talentos no mercado de maneira estrutural para suportar o crescimento, a primeira gera os comportamentos que vimos até aqui, a segunda, demora, mas constrói caminhos mais sustentáveis no médio/longo prazo.
Victor, foi um prazer colaborar de alguma forma com o artigo e as discussões produtivas relacionadas a esse tema. Conte comigo para futuras contribuições !!!
Parabéns Victor, excelente série. Realmente o maior gargalo que veio é a falta de comunicação com lideres e gestores. Isso infelizmente mata a cultura e a vontade de interagir com as pessoas e a empresa, muitas pessoas trocam de empresa sem ter conhecimento de metade do fit cultural desta empresa que esta de saída.