A pesquisa da Febraban sobre Tecnologias Bancárias em 2021 é inequívoca: o PIX teve uma adesão excepcional desde novembro de 2020. Esses dados são derivados a partir das estatísticas de uso liberadas pelo Banco Central sobre o PIX.
Nós vimos a concepção, implantação, adoção e sucesso de um novo padrão para pagamentos instantâneos que deveria deixar qualquer product manager de plantão estupefato pela eficácia dessa execução feita pelo Banco Central em conjunto com as empresas e instituições que compõe o ecossistema de serviços financeiros do Brasil.
Mesmo se considerarmos as histórias desafiadoras das empresas para aderirem e entregarem o apertado cronograma de implantação desenhado pelo Banco Central, a eficácia da implantação do PIX é indiscutível.
Fonte: Pesquisa Febraban de Tecnologia Bancária 2021
Nesse conjunto de artigos vamos falar um pouco sobre aspectos essenciais que foram executados pelo Banco Central Brasileiro de forma a catalisar a criação e adoção do mesmo no mercado brasileiro. Mas antes, vamos analisar outras vezes em que dinâmicas similares como essa ocorreram
Por que o meu teclado é QWERTY e o meu video cassete era VHS?
A história do teclado no formato QWERTY é um belo exemplo de uma batalha para instituir um novo padrão dominante em um mercado. Desde a sua criação em 1873 ele é constantemente desafiado por ser um layout menos eficiente do que outras soluções propostas, e no entanto permanece o layout mais difundido 148 anos depois.
Por exemplo, um padrão que potencialmente poderia desbancar a hegemonia do formato QWERTY é o formato Dvorak que ficou popular nos anos 1920 e 1930, esse formato apresentava uma performance superior.
“The majority of the Dvorak layout's key strokes (70%) are done in the home row, claimed to be the easiest row to type because the fingers rest there. Additionally, the Dvorak layout requires the fewest strokes on the bottom row (the most difficult row to type). By contrast, QWERTY requires typists to move their fingers to the top row for a majority of strokes and has only 32% of the strokes done in the home row”
Fonte: “Dvorak Keyboard Layout - Comparison of the QWERTY and Dvorak Layout”
No entanto o teclado onde eu escrevo esse artigo não utiliza esse formato.
Uma das lendas em torno do teclado QWERTY era sobre como esse layout foi concebido assim por conta de aspectos mecânicos das máquinas de escrever, de forma a evitar que a engenhoca travasse. Mas mesmo assim, quando a tecnologia começou a ser usada em computadores ( onde esse problema não acontecia mais ) nós continuamos a usar o QWERTY
“When the first generation of computer keyboards emerged, there was no longer any technical reason to use the system – computers didn’t get jammed. But of course, there’s the minor fact that millions of people learned to type on the QWERTY keyboards. It had become truly ubiquitous in countries that used the Latin alphabet.”
É curioso ver como esse desafio de se estabelecer como um formato dominante se mantem essencialmente o mesmo mais de um século depois. Abaixo, um relato sobre como o criador do formato QWERTY atuou para garantir a adesão do mesmo, assim como dependeu da adesão de empresas chaves na indústria para se estabelecer como o formato padrão da indústria
“By 1873 (…) Form follows function and the keyboard trains the typist. That same year, Sholes and his cohorts entered into a manufacturing agreement with gun-maker Remington, (…). The deal with Remington proved to be an enormous success. By 1890, there were more than 100,000 QWERTY-based Remington produced typewriters in use across the country. The fate of the keyboard was decided in 1893 when the five largest typewriter manufacturers –Remington, Caligraph, Yost, Densmore, and Smith-Premier– merged to form the Union Typewriter Company and agreed to adopt QWERTY as the de facto standard that we know and love today.
There’s a somewhat related theory that credits Remington’s pre-merger business tactics with the popularization of QWERTY. Remington didn’t just produce typewriters, they also provided training courses – for a small fee, of course. Typists who learned on their proprietary system would have to stay loyal to the brand, so companies that wanted to hire trained typists had to stock their desks with Remington typewriters. It’s a system that’s still works today (…)”
Uma miríade de táticas foram usadas: treinamentos, competições de digitação para chamar a atenção do público e da mídia ( hype ), acordos com grandes produtoras de máquinas de escrever e um pouco de sorte determinaram que a história seguiria esse caminho em vez de outro.
O mesmo aconteceu algumas décadas atrás na disputa pelo padrão de fitas de video cassete, a competição entre os formatos VHS e Betamax é amplamente conhecida, estudada e apresenta lições importantes para o desafio de adoção de um novo padrão, por exemplo, algumas das explicações para a vitória do formato VHS mais aceitas são:
Lojas de aluguel de fitas de video observaram mais procura pelo formato VHS, e por isso compraram mais fitas neste formato, aumentando o catalogo disponível em um formato (VHS) versus no outro (Betamax) - o que motivava a compra de aparelhos video cassete em formato VHS, até que eventualmente não fazia mais sentido ter um catalogo de fitas Betamax, consolidando a vitória do formato VHS
Quanto mais os produtores de aparelhos de video cassete percebiam que os aparelhos que mais vendiam eram os que suportavam o formato VHS, maior era o incentivo para a produção do mesmo, assim como a diminuição da produção de aparelhos que suportavam o formato Betamax
Como a maioria dos aparelhos suportavam VHS, os produtores de conteúdo focavam no formato vencedor, o que levava a produção de mais conteúdo ainda sendo disponibilizado em um formato versus o outro ( uma das lendas em torno dessa batalha é que a Sony não licenciou o formato Betamax para produtoras de vídeos pornográficos e eventualmente isso ajudou a sepultar o formato )
O resto é história. No entanto em ambos os casos existe uma certa natureza inevitável para que um formato ou outro vença a competição e se torne o padrão estabelecido, quase como se houvessem dinâmicas que selassem o destino de um ou outro, além disso essas dinâmicas aparentam se intensificarem cada vez mais com o passar do tempo.
Path Dependence - o caminho que nos trouxe até aqui importa
O que discutimos acima pode muitas vezes ser explicado pela dependência de trajetória (ou caminho, como as vezes é chamada), esse tema é muito estudado em economia, sociologia e em sistemas dinâmicos complexos, podendo ser definido da seguinte forma:
“Path dependence exists when a feature of the economy (institution, technical standard, pattern of economic development etc.) is not based on current conditions, but rather has been formed by a sequence of past actions each leading to a distinct outcome.”
Ou ainda
“Path dependence is when the decisions presented to people are dependent on previous decisions or experiences made in the past.”
O teclado no formato QWERTY, o formato VHS, o largura das nossas ruas e diversos outros exemplos existentes ao nosso redor são exemplos de dependências de trajetória comumente observados.
Na grande maioria dos casos, algumas dinâmicas essenciais determinam se uma trajetória ou outra será seguida, além disso eventos bem pequenos no inicio da competição podem disparar uma cadeia de eventos que sela a direção em uma trajetória.
Existem alguns aspectos que costumam determinar a dependência em uma trajetória ou em outra:
diminuição da barreira de entrada: para a adoção de um novo padrão ( ou para esse caso igualmente aplicáveis a produtos, serviços e plataformas ) a diminuição da barreira de entrada/adoção é essencial para o seu sucesso, por exemplo, um novo software de leitura e edição de texto que permite a importação de formatos de outros softwares concorrentes facilitando assim a adoção e uso do mesmo
aumento da barreira de saída: diametralmente oposto ao ponto anterior, aumentar a barreira de saída contribui para o lock-in, aumentando a inércia para a saída. Por exemplo, esse mesmo software de leitura e edição de texto pode não ter uma função de export para outros tipos de formatos e complementar esse barreira com alguma propriedade intelectual em seu formato que não possa ser replicada ou lida pelos softwares concorrentes
custo de mudança: eu falei brevemente sobre esse conceito em um artigo recente, esse ponto é obviamente relacionado com o ponto anterior, o custo de mudança muitas vezes é constituído do custo de setup e do custo de operação, e é uma das formas de lidar com o aumento/diminuição das barreiras de entrada/saída
Voltando para a nossa discussão de adoção de novos padrões, é interessante avaliarmos como os quesitos acima influenciaram a adoção do formato QWERTY ou ainda no caso do VHS. No livro Business Dynamics, o professor John D. Sterman descreve bem a sequencia de eventos ao longo do tempo que levaram a dominância de um formato sobre o outro:
“(…) When VHS was introduced, the installed base of VCRs was so small that compatibility was not yet an issue for most customers. Other attributes of product attractiveness dominated in the purchase decision. Whereas Sony, hoping to monopolize the format they believed would become industry standard, kept tight control of the technology, thus restricting its availability and keeping the price relatively high, Matsushita decided to license VHS widely and cheaply. The VHS consortium, tough the later entrant to the market, was able to gain the largest share of the market, just at the point where total sales growth exploded and rapidly overcame the initial installed base advantage of Betamax. VHS became the leader around the time film studios began to issue films for the home video market. Once the film studios decided to produce tapes for the home market, compatibility became the dominant attribute of attractiveness in purchase decision of most customers, and film studios chose to issue tapes in the most prevalent format. Matsushita’s strategy gave them the lead in share of VHS tapes just at the time compatibility became critical. Though Sony tried to fight back by lowering prices and encouraging production of Betamax format tapes, the window of opportunity had shut. The growth of the installed base had strengthened the network effects so much that VHS’s lead could not be overcome. The fate of Betamax was sealed.”
Fonte: Business Dynamics: Systems thinking and modeling for a complex world, John D. Sterman
Takeaways e o PIX
A adoção de sucesso do PIX respeitou diversos aspectos sistêmicos para conseguir obter o resultado que teve até agora, vamos aprofundar isso no próximo artigo
Já observamos em diversos outros pontos da história como ocorreu a adoção de novos padrões, desde o teclado QWERTY, a batalha entre a VHS e o Betamax e a competição entre os sistemas operacionais iOS e Android, vemos sistematicamente os mesmos elementos essenciais determinando o sucesso ou fracasso de um novo padrão ou plataforma
A dependência de trajetória ( path dependence ) ajuda a avaliar sob um prisma prático os fatores que afetam o sucesso ou fracasso da introdução de um novo padrão: aumento/diminuição de barreiras de entrada/saída, custos de mudanças e lock-in, propaganda/marketing e subsídio para catalisar a adoção de um padrão, relacionamento com a força de trabalho e fornecedores ( supplier bargain power ) ou ainda regulamentação, são componentes que afetam o sucesso da criação de um novo padrão
No próximo artigo vamos falar sobre como alguns dos conceitos introduzidos aqui se aplicam no planejamento e execução do PIX pelo Banco Central
Um aspecto importante sobre essa discussão da qualidade em relação ao padrão tem correlação com o que prega o Fit For Purpose: o cliente (ou consumidor) enxerga a qualidade como o suficiente pra necessidade, ou seja, é disperdício a qualidade superior depois de uma determinada faixa de tolerância.
É como na música, tem gente que se vangloria sobre ter ouvido sensível, eu não consigo notar diferença enttre um MP3 criado com 128, 160 ou 320 KBPS.