Incentivos e comportamentos - Parte 1
Uma breve introdução a incentivos e comportamentos em sistemas dinâmicos e complexos
“There are no side effects, just effects”
John Sterman
Durante a dominação inglesa da Índia nos séculos 18 e 19, o governo britânico se tornou cada vez mais preocupado com o alto número de cobras na cidade de Delhi e após cuidadosamente considerar como resolver esse tema de saúde pública os gestores decidiram iniciar um programa de recompensa onde para cada cobra morta que fosse apresentada aos oficiais ingleses seria pago um valor monetário em troca.
O pensamento aplicado para desenhar esse sistema de incentivos e obter o resultado desejado tinha a seguinte lógica: se pagarmos uma recompensa por cobras mortas, as pessoas serão incentivadas a matar mais cobras na natureza para ganhar esta recompensa e com isso veremos uma diminuição na população de cobras na região, atingindo o nosso objetivo inicial.
No período após a implantação dessa política e intervenção, os resultados foram positivos, grandes números de cobras foram mortas e apresentadas aos oficiais em troca de dinheiro.
Após algum tempo com essa política sendo executada, alguns “empreendedores” perceberam que poderiam se beneficiar deste incentivo: eles começaram a criar cobras, para depois matá-las, em troca de dinheiro.
Algo que deveria ter um resultado positivo, estava na verdade gerando o efeito inverso, quase como um incentivo perverso para alguns atores.
Quando o governo britânico percebeu o que estava acontecendo, ele suspendeu a política de recompensa, o que por sua vez fez com que os criadores de cobra soltassem na natureza as cobras que estavam em cativeiro, pois o benefício econômico que antes era atrativo não existia mais.
O resultado final é que mais cobras ainda se proliferaram na natureza, agravando ainda mais o problema original.
Acima: o processo de planejamento e intervenção em sistemas complexos quando feito com o modelo mental errado ignorando a complexidade das interações entre os agentes envolvidos, o que leva a distorções ou simplificações.
A visão de mundo dos interventores britânicos fez com que eles abordassem o problema da população de cobras de uma maneira linear, assumindo uma relação de causa e efeito local dissociada de um todo bem mais integrado e complexo.
Além disso, a abordagem desconsiderou os possíveis efeitos indesejáveis ( os chamados “efeitos colaterais” ) daquela intervenção e falhou em se antecipar para mitigá-los ou diminuir os seus impactos.
Em um exemplo mais contemporâneo podemos explorar o escândalo de fraude no banco Wells Fargo, onde aproximadamente 1,5 milhões de contas bancárias fraudulentas foram criadas sem o consentimento dos clientes.
O episódio ocorreu da seguinte forma: Entre 2011 e 2016 a gestão do banco colocou metas agressivas de vendas para alguns dos seus funcionários, alguns diriam até que as metas eram impossíveis de serem atingidas. Apesar disso, durante algum tempo tudo parecia estar indo bem, pois o banco estava conseguindo atingir parte do que havia sido planejado nas metas.
Após alguns anos descobriu-se como essas metas estavam sendo de fato atingidas: sob a pressão de perderem os seus empregos se tais targets não fossem alcançados, funcionários do banco começaram a fraudar a criação de contas usando dados dos clientes sem consentimento.
Uma vez descoberta a fraude, 5,200 funcionários foram demitidos, o órgão regulador aplicou uma multa de USD$185 milhões contra a Wells Fargo e o banco enfrenta um total de USD$2,7 bilhões em ações civis e criminais, adicionalmente o CEO do banco foi forçado a deixar o cargo.
“Wells Fargo's sales culture and cross-selling strategy, and their impact on customers, were documented by the Wall Street Journal as early as 2011. In 2013, a Los Angeles Times investigation revealed intense pressure on bank managers and individual bankers to produce sales against extremely aggressive and even mathematically impossible quotas. In the Los Angeles Times article, CFO Timothy Sloan was quoted stating he was unaware of any ‘...overbearing sales culture’. Sloan would later replace John Stumpf as CEO.
Under pressure from their supervisors, employees would often open accounts without customer consent. In an article from the American Bankruptcy Institute Journal, Wells Fargo employees reportedly "opened as many as 1.5 million checking and savings accounts, and more than 500,000 credit cards, without customers' authorization." The employees received bonuses for opening new credit cards and checking accounts and enrolling customers in products such as online banking. California Treasurer John Chiang stated: ‘Wells Fargo's fleecing of its customers ... demonstrates, at best, a reckless lack of institutional control and, at worst, a culture which actively promotes wanton greed.”
fonte: Wells Fargo account fraud scandal - Wikipedia
O ciclo abaixo descreve a dinâmica envolvida aqui: quanto maior o gap entre a meta de abertura de contas e a quantidade de contas atualmente abertas, maior é a pressão para se abrir contas ( ou seja, maior é a dificuldade de se bater a meta ), quanto maior a pressão mais ações para conseguir a abertura de contas serão feitas ( tanto ações legais quanto as ilegais em alguns casos, especialmente em algumas culturas corporativas que permitam esse tipo de comportamento ).
Conforme mais ações para se aumentar o numero de contas são feitas, eventualmente os resultados aparecem, fechando o gap entre a meta e o real, gradualmente reduzindo a pressão neste ciclo.
Neste caso específico, essa meta também era atrelada ao bonus financeiro dos agentes envolvidos, o que obviamente guiava uma boa parte do comportamento.
Acima: uma descrição do problema de incentivos enfrentado pela Wells Fargo e a relação entre o target/actual/gap ao se buscar alcançar uma meta.
Nós já sabemos que muitos tipos de intervenções e políticas podem ser pervertidas em relação ao seu objetivo original e acabar causando efeitos indesejados. A questão que eu gostaria de discutir neste artigo é como podemos entender e conceber intervenções que sejam mais sustentáveis no médio/longo prazo.
Diferentes visões de mundo…
Para começarmos a falar sobre incentivos, primeiro precisamos falar um pouco sobre como os atores envolvidos percebem o mundo ao seu redor, como eles entendem as relações de causa e efeito, e como parte do seu comportamento é determinado.
Por exemplo, podemos encontrar um caso em um produto digital, onde queremos aumentar o número de novos usuários assinantes de uma plataforma de streaming por mês pois desde a entrada de um novo competidor estamos perdendo market share para ele.
Existem diversas alavancas para conseguirmos fazer isso: promoção cortando o preço da assinatura para atrair mais demanda, zerar a quantidade de bugs e erros no sign-up para maximizar a conversão dos usuários que já estão propensos a assinar, substituir o VP de conteúdo e parcerias por alguém que consiga estimular a criação de conteúdos mais atrativos aumentando a demanda de novas assinaturas, entre outras possibilidades.
Uma abordagem para a resolução de um problema deste tipo poderia assumir a seguinte visão de mundo:
Nesta visão de mundo, existem os objetivos que queremos atingir, adicionalmente a isto existe a situação vigente na qual nos encontramos. Nesta situação e impedindo o alcance dos nossos objetivos estão um ou mais problemas. Para resolver esses problemas tomamos decisões que entendemos que dado o contexto irão entregar os resultados que queremos.
Neste caso, existe uma certa visão de mundo orientada a eventos para permitir que este tipo de abordagem seja implementada, em muitos casos trazendo resultados negativos, contra intuitivos ou resistências as intervenções:
“One cause of policy resistance is our tendency to interpret experience as a series of events, for example, ‘inventory is too high,’, or ‘sales fell this month’. (…) We are taught at early stage that every event has a cause, which in turn is an effect of some still earlier cause: ‘Inventory is too high because sales unexpectedly fell. Sales fell because the competitors lowered their price. The competitors lowered their price because…’ (…)
The event-oriented worldview leads to an event-oriented approach to problem-solving. (…) We assess the state of affairs and compare it to our goals. The gap between the situation we desire and the situation we perceive defines our problem.”
fonte: Business Dynamics, Causes of policy resistance - John D. Sterman
No nosso caso acima, por exemplo, se decidirmos cortar pela metade o preço da assinatura para estimular a demanda para combater o avanço da competição, a quantidade de novos usuários provavelmente vai aumentar.
No entanto, como resposta a diminuição do preço, a competição pode ser mais agressiva ainda e baixar ainda mais o preço praticado por ela, ou seja depois de um tempo voltaremos a ter o problema original só que desta vez em um patamar pior.
Quase que diametralmente oposta a visão linear, podemos abordar os problemas utilizando uma visão sistêmica, mais integral do contexto e problema com o qual estamos lidando, onde os nossos objetivos informam as nossas decisões que afetam o ambiente e o contexto onde estamos inseridos. Essas decisões causam efeitos ( tanto os efeitos desejados assim como os indesejados - os chamados de “efeitos colaterais” ) que também afetam o ambiente e o contexto.
Por essa visão de mundo, sabemos que existem outros agentes operando neste mesmo ambiente e contexto, esses agentes possuem os seus próprios incentivos e objetivos, e por consequência de uma mudança no ambiente e no contexto, adaptam/calibram também as suas ações para atingir os seus objetivos ( ou mudá-los ) neste novo cenário.
Toda esta dinâmica é complexa, e as relações de causa e efeito são influenciadas pelos ciclos de feedbacks, os efeitos gerados, atrasos ( delay ) nas reações dos agentes e mudanças no ambiente/contexto, além de revisões de objetivos e metas, isso tudo considerando que podem haver outras intervenções que podem estar ocorrendo concomitantemente no mesmo contexto.
O modelo mental do interventor britânico em Delhi para lidar com o problema das cobras não considerou o contexto mais amplo onde ele estava interferindo: o alto nível de desemprego na época estimulou as pessoas a buscarem fontes de rendas alternativas ( e algumas delas ilegais ), tornando-as suscetíveis a idéia da criação em cativeiro de cobras, além disso ele nunca explorou o espaço do problema original: qual o contexto do ecossistema que causa a proliferação de cobras naquele ambiente em primeiro lugar? Em vez disso, eles decidiram tratar o sintoma ( proliferação de cobras ), em vez de explorar as suas relações causais e sistêmicas mais profundas.
No caso da Wells Fargo, o CEO desenhou um modelo de cotas agressiva e o atrelou aos bonus dos funcionários ( e manutenção no médio prazo dos seus empregos ), desconsiderando que a pressão exagerada ( e o medo de perder os seus empregos ) poderia desencadear o comportamento ilegal que foi gerado.
Provavelmente o seu modelo mental sobre como incentivar um resultado maior no processo comercial era o de estabelecer metas agressivas e cobrar implacavelmente os membros da equipe até que soluções criativas para problemas complexos começassem a aparecer.
Se cada vez mais no mundo de hoje uma abordagem linear para o entendimento e intervenções em um contexto complexo é pouco eficaz, por que será que vemos ( e temos ) uma insistência em usar esta visão de mundo para lidar com a enorme complexidade do mundo atual?
Nos próximos artigos da série vamos explorar como alguns aspectos sobre o contexto de incentivos e comportamentos se conectam e como podemos modelar intervenções com maior chance de sucesso em sistemas complexos.