DoorDash e estratégias de entrada para um produto digital
A DoorDash é uma empresa de entrega de comida por aplicativos, similar ao UberEats ou Seamless nos Estados Unidos, ou ao iFood e Rappi ( em alguns sentidos ) aqui no Brasil. O modelo de negócio deles é bem definido hoje em dia, conectando restaurantes, entregadores e consumidores atendendo a demanda por comida durante uma refeição.
O objetivo desse post não é fazer uma análise aprofundada sobre a DoorDash, e nem sobre o mercado de entrega de comida por aplicativos, creio que para isso já existem análises super profundas que servem de referência para a discussão aqui, assim como o material super interessante que a empresa apresentou no seu S-1 ao dar entrada no processo de IPO.
O que eu gostaria de focar aqui é na estratégia de entrada no mercado que foi adotada pela Doordash ( independentemente do sucesso posterior da empresa ). Uma análise desse movimento de entrada complementa em muitos aspectos a discussão em torno de customer development e product discovery, assim como as opções estratégicas de lançamento do seu produto.
Michael Bloch, que foi um dos primeiros 50 funcionários da DoorDash, descreveu de maneira bastante interessante o processo de decisão em torno da estratégia de entrada naquela época em uma série de tweets que eu replico ao lado.
Ele conta uma história onde os executivos da Doordash focaram deliberadamente em um segmento do mercado pouco intuitivo - os subúrbios americanos.
Enquanto a competição por entrega dentro dos grandes centros urbanos era intensa em diversos aspectos, os subúrbios, apesar de possuírem uma população mais esparsa parecia ser um segmento mais atrativo para se começar. Qual a utilidade para a DoorDash ao focar em um segmento de mercado mal atendido e quais são as implicações dessa decisão?
Atendendo um segmento de mercado mal atendido, e porque isso é relevante?
O objetivo inicial ao lançar um produto novo no mercado é encontrar algum grupo ( inicialmente um grupo pequeno ) de pessoas que entendam que o seu produto gera valor para elas e que estariam dispostas a adotar o mesmo em seu dia a dia.
Existem algumas formas de se fazer isso, uma delas seria oferecer um produto/serviço com performance superior para uma base de clientes já existente, onde você efetivamente está "se apropriando" de uma fatia do mercado que antes pertencia a outro produto ou substituto similar.
Outro jeito seria oferecer um produto que atende as expectativas do usuário, porém por um preço inferior atraindo então uma base de usuários que já entende o valor daquele produto/serviço porém que possuem uma sensibilidade maior a preços altos. Nesse ponto a conversa volta para o tema de performance, ou seja, o quanto de qualidade/performance a mais justifica um preço maior vs. o quanto essa qualidade/performance a mais é vista como "excesso" ( “overshoot” ) afetando negativamente a "vontade por pagar" por aquele produto, e então permitindo a entrada de um competidor oferecendo um produto similar, no entanto por um preço mais barato.
Uma terceira forma de olhar o problema, gira em torno da abordagem que a DoorDash seguiu: enquanto a competição de entrega de comida por aplicativos estava explorando uma região densamente populada, onde obviamente a demanda e a infraestrutura para entrega de valor era mais robusta e complexa ( ao mesmo tempo que oferecia uma menor barreira de entrada para mais competição), a Doordash decidiu explorar um segmento de clientes que estavam mal atendidos.
A experiência de pedir comida por aplicativos em regiões de subúrbio tinha tudo para ser uma experiência ruim e que fatalmente prejudicaria a operação de um negócio: os restaurantes de entrega de comida normalmente operam em um raio de entrega e subúrbios não costumam ter uma variedade excepcionalmente grande de restaurantes para atrair uma base consistente de usuários, a infraestrutura de entrega e a frota de entregadores tende ser menos densa fazendo com que os tempos de espera sejam maiores e a logística menos eficiente, além disso a base de usuário tende a estar mais distribuída na sua região geográfica ao longo de uma distância maior - o que faz com que a capacidade de reuso de um entregador para cobrir múltiplas entregas em uma mesma saída seja menor, assim como o tempo entre pedido e comida entregue tende a ser maior levando ao principal erro a ser evitado na experiência de entrega de comida: entregar uma comida fria!!!
Mas então, duas perguntas surgem aqui:
Porque a Doordash, vendo todos esses fatores, ainda achou interessante planejar a sua estratégia de entrada por esse segmento de mercado?
Porque os competidores da época não conseguiram se mobilizar a tempo para também atender essa demanda neutralizando a Doordash?
Para responder a primeira pergunta precisamos falar sobre o valor de um segmento de mercado mal atendido.
O valor de um segmento mercado mal atendido / negligenciado
Em primeiro lugar é importante entendermos porque um mercado onde existe um produto ou serviço atuando, acaba por gerar alguns segmentos que são melhor atendidos e outros que são pior atendidos. Tipicamente um incumbente almeja atender os seus clientes mais rentáveis e mais demandantes com produtos e serviços que estão em constante processo de evolução e melhoria, nesse processo invariavelmente alguma fatia desse mercado que é menos rentável e menos demandante recebe menos atenção e passa a ser mal servida, ela pode ser mal servida porque a solução é genérica demais para as necessidades específicas daquele segmento ou ela pode ser mal servida porque a performance e/ou preço ultrapassaram a sua necessidade/capacidade de obter aquele produto ou serviço.
Um exemplo para ilustrar esse cenário, seria um smartphone cujo fabricante produz uma câmera fotográfica capaz de produzir fotos com uma qualidade de ampliação para impressão maior (performance) do que a necessária para um uso corriqueiro ( por exemplo, postar fotos nas redes sociais, onde não existe a necessidade nem de impressão, nem de ampliação ). Até esse ponto tudo bem, desde que o preço desse smartphone esteja dentro da minha capacidade/vontade de pagar por aquele produto/serviço, em outras palavras, se o preço daquele smartphone for maior do que a minha capacidade/vontade de pagar por causa da performance da câmera, então eu desisto daquele produto ou procuro um substituto, mas se o preço estiver dentro da minha capacidade/vontade de pagar e eu ainda sim leve uma câmera com aquela performance, então ok, é um bom negócio.
Uma outra forma viável é quando um produto ou serviço consegue criar um mercado, ou melhor dizendo, quando conseguimos explorar um novo mercado convertendo um grupo de pessoas que antes não eram atendidas por esse produto ou serviço em clientes que são atendidos por esse produto ou serviço.
No entanto, a pergunta continua: porque uma empresa aplicaria os seus esforços e recursos escassos para atender um segmento de mercado que é menos rentável e menos demandante?
De início precisamos reconhecer que existe uma lógica bastante razoável em atender os seus clientes mais rentáveis de forma prioritária, essa lógica inclusive potencializa a dinâmica em que uma empresa foca cada vez mais em atender esse tipo de cliente, até que eventualmente a performance do seu produto ou serviço ultrapassa a expectativa tanto daquele cliente quanto dos outros para além do ponto onde o seu produto ou serviço é relevante.
O que devemos entender sobre o segmento de mercado mal atendido é se ele é denso o suficiente, em outras palavras, se ele possui um tamanho atraente o suficiente para acomodar as ambições iniciais do produto e serviço sendo lançado? A segunda pergunta tem ligação com a expectativa daquele segmento em relação ao valor que o produto ou serviço entrega e o quanto cobramos por ele.
A dinâmica que se inicia em seguida ( quando o produto ou serviço tem sucesso ) é que aquele segmento passa a ser atendido, muitas vezes com uma performance inferior a performance que o segmento bem atendido obtém. No entanto, como esse segmento era mal atendido antes, mesmo com uma performance inferior aquele segmento adere ao seu produto/serviço.
Aplicando esse modelo ao caso da Doordash teríamos a seguinte situação: o atendimento do produto/serviço de entrega de comida por aplicativos em centros urbanos tem uma performance adequada ao segmento de mercado que é bem atendida por ela, por exemplo, uma lista de restaurantes farta, entrega entre 20 - 45 minutos, eficiência na utilização da capacidade de entrega, e no geral clientes satisfeitos. No entanto, o cliente do subúrbio quando era atendido pelo produto/serviço cujo foco era atender os clientes dos centros urbanos tinha uma experiência péssima: poucos restaurantes disponíveis para fazer o pedido, tempo de espera altíssimo, experiência ruim, comida fria. No entanto o problema é mais profundo, a empresa focada em atender os centros urbanos prioritariamente está otimizada para atendê-lo em toda a sua cadeia de valor, o que gera uma inércia impedindo atender igualmente bem dois segmentos divergentes simultaneamente.
Mapa da "Cabeça de Praia" durante a invasão da Normandia na 2a Guerra Mundial
E é nesse ponto que a Doordash se alavancou, entendendo que se ela coordenasse as suas atividades de forma a focar em atender esse segmento de mercado, ela encontraria a sua "cabeça de praia" para começar a tracionar o produto/serviço dela. As implicações dessa decisão são enormes, e a estratégia do produto foi obrigada a seguir o contexto estratégico mais amplo da empresa. Em outras palavras, diversas decisões desde a abordagem de aquisição de restaurantes, customização de pedidos - famílias do subúrbio tendem a fazer pedidos maiores pois tendem a pedir comida para uma grande família vs. o morador de centros urbanos que mora sozinho em um apartamento de 60m2, até alinhamento da logística de entrega, taxa, gorjeta deveriam seguir alinhadas aos trade-offs dessa decisão estratégica.
A próxima pergunta natural é para onde vamos depois que o nosso contexto estratégico alinhado as atividades ao longo da nossa cadeia de valor reflita em um produto/serviço que atenda bem um segmento de mercado? O que acontece em alguns casos, é que a empresa se torna nichada em um grupo específico. Em outros casos, após se estabelecer como a empresa dominante em um segmento, o seu produto/serviço aos poucos vai melhorando em performance e conquistando outros segmentos, até chegar em um ponto onde começa a rivalizar o produto/serviço posicionado como dominante no mercado principal.
Mapa da "Cabeça de Praia" após o avanço das tropas Aliadas pela Normandia.
Takeways:
Avaliar a estratégia de entrada do seu produto/serviço em um mercado é uma atividade essencial para o lançamento do seu produto. Existem diversas oportunidades ao observar um mercado grande o suficiente que é mal atendido por um produto/serviço similar cujo foco está em outro segmento de mercado. A oportunidade pode surgir também quando o produto/serviço do incumbente possui performance e/ou preço que ultrapassam a capacidade/vontade de pagar pelo produto/serviço. Para atender de maneira adequada um segmento específico deve existir um alinhamento implacável de atividades na empresa (no nosso exemplo: vendas, marketing, seleção de restaurantes, entrega e relação com entregadores, desenvolvimento do produto, SAC, etc. ) que tenham fit com aquele segmento e que façam trade-offs conscientes sobre o que fazer e o que não fazer dentro daquele contexto estratégico. Eventualmente após constituir a sua "cabeça de praia" de forma consistente, o desafio passa a ser levar o seu produto/serviço para outros segmentos do mercado, isso provavelmente vai requerer uma avaliação profunda sobre o fit das atividades na sua cadeia de valor para criar e capturar valor para aquele próximo segmento do mercado, quesitos super importantes sobre a performance/preço do seu produto/serviço deverão ser revisitados também nessa etapa.